segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Princípio da Incerteza

Ora essa! Basta estar a salvo para surgir o "talvez...".

Revolução

Um novo conceito de diferente abordagem ligado a um ato de soberania pessoal.

Amoral

Não há deus que não seja suplantado pela falta de caráter.

Convencional

O que é a vida, se não uma mera convenção do tempo - espaço entre nascer e morrer?
E o que é o tempo, se não uma mera convenção dos vivos?

Como decidir o futuro nas optativas

Ou uma palmeira pode cair na sua cabeça qualquer dia desses... E quem vai dizer que não foi 'Deus'?

Judas

Tens corrido o mundo, mas não encontrar-se-á.

Meu pequeno leãozinho

(...)
E esses filés eram as carnes de segunda que a vida te dava.
Não, não eram as partes mais nobres de nossas vidas.

(...)

Incinerador

Matéria morta, retorcida.
Queimar é transfigurar algo de seu potencial real de existência.

Siga em frente.
Ganhara um diário. A menina alimentara, então, o desejo insaciável de preencher aquelas páginas, que marcavam com sua escrita forte e corrida como um trotar a cavalo no quente medio-dia.
Ah, céus, ela só queria completar os seus dias.

Tinteiro

Meu querido cosmopolita, esse dom da caneta vem acompanhado de muitos "poréns" e orações subordinadas, senão o ponto final em si.

Ousa - Discurso de Formatura (Feras 2010)

Desejo boa noite aos professores, aos meus colegas e aos seus familiares e amigos. Hoje é uma noite de comemoração. É o momento em que ocorre a efêmera intersecção entre dois ciclos. Ciclos que não são opostos, são complementares. Nossas caminhadas, únicas por si só, se encontram nessa cerimônia para algo que fará parte da vida de todos nós, feras. Somos quinhentos! Não são times de futebol que nos unem, nem posicionamentos políticos ou bandas. Estamos aqui porque, mesmo que um dia nossas vidas se separem, todos nós, sem exceção, nos transformamos.
Senhoras e senhores, permitam-me uma metáfora. Escolham um entre todos os bebês que devem ter nascido neste exato momento. A primeira coisa que ele certamente fez foi chorar. Chorar porque, pela primeira vez em sua curta e suave existência, o ar preencheu seus pulmões. A consciência nos é dada: eis o “sopro da vida”. E, mesmo não nos lembrando mais disso, aprendemos com esse choro que nos acostumamos às adversidades da vida em pouco tempo. Segundo Sartre, a existência precede a essência. Se for assim, o choro foi só a primeira das transformações que teríamos para ser o que somos hoje.
E o que é o terceirão se não esse choro? Sartre, em sua obra O Existencialismo é um humanismo, propõe que o homem está condenado a ser livre. Sim, estamos. E essa liberdade nos traz responsabilidades, compromissos. Nossos próprios professores, por exemplo, nunca nos deixaram esquecer de que na hora da prova não tem pai, nem mãe, nem vale transporte. Ensinaram-nos que nessa hora não podemos perder a calma, do contrário, estaremos abandonando ao que construímos, tijolo a tijolo. Também é fundamental para o uso correto da liberdade o apoio da família – que nos carregou nos braços pela longa infância humana e nos construiu com cada lição.
O que falar dos amigos, então? Há aquilo que sabemos sem que sejam necessárias palavras! Eles não têm limites para o que podem fazer por nós. Dedico-lhes uma breve citação cujo autor me é desconhecido: “eu suportaria, não sem dor, que os meus amores partissem, mas enlouqueceria se os meus amigos morressem”. É a eles que eu aconselho que chorem caso estejam verdadeiramente emocionados. Chorem muito. Essa será uma daquelas poucas oportunidades para chorar como uma criança e ser recebido nos braços de seus familiares como se todos aqui tivessem nascido de novo. Purificados por esse ritual de passagem que é a formatura. Fortalecidos e unidos para o que está por vir, porque, apesar de tudo, não há condenação melhor que ser livre.
O que passamos foi uma jornada de autoconhecimento, ainda que ao acaso, no microcosmo de 10 meses de existência que é o terceirão. Os professores sabem que ele sempre se desorganiza e volta no ano seguinte, com personagens novos. Mas o que nós vivemos vai sempre nos parecer incomparável, original. Não bastou nos atirar com afinco ao trabalho. Há um momento no qual parece não haver mais forças. Estávamos cansados. Talvez nem sempre estivéssemos preparados para o jeito como o tempo passou. Nossa paciência, nossa resistência e quem sabe até mesmo nossa ambição foram testadas nas aulas com as quais não tínhamos a menor afinidade. Usamos obrigatoriamente da liberdade e observamos, então, que se fez necessário algo mais que conhecimento. Algo que não se encontra em apostilas por aí. Algo que agora sabemos que conquistamos para nós. E para tal não adiantou ser uma pessoa positiva ou achar que tinha o dom. Tinha que ser aluno BOM. E é por isso que enquanto eles têm número, nós temos performance e não saímos do Bom Jesus só futuros senhores mestres ou doutores. Não foi só um ano de vocações despertadas. Nós aprendemos sobre o mundo ao nosso redor, dentro de uma sala de aula, sem nos dar conta de que o que aprendíamos era sobre nós mesmos. Sobre o nosso país, sobre o nosso corpo, sobre o nosso cotidiano, sobre como nos expressávamos. E não é mesmo que tudo isso valeu para o “prosseguimento da nossa carreira estudantil”?
Essa lição eu aprendi olhando para aqueles quadros com as fotos das formaturas dos anos passados e que ficam nas paredes da coordenação. Ela se trata de algo que não podem mais tirar de nós, já faz parte da nossa essência. Regis Jauffret, escritor francês, descreveria melhor com apenas uma frase: “Estarei sempre lá: a infância é um lugar, não uma época”. Nós fizemos história no Bom Jesus, meus colegas! Uma parte de nós estará sempre lá, naquelas paredes, onde nunca envelheceremos, encarando com satisfação a todos aqueles que ousarem querer estar no nosso lugar. Um belo dia nossos filhos encontrarão as fotografias que guardamos de hoje – e que, por favor, se faça lembrar: primeiro de dezembro de 2010 - e entenderão que são memórias de nossos melhores dias.
Ademais, daqui para frente é conosco. Uma vez que adquirimos maturidade e liberdade para decidir nosso futuro ao longo do ano, também temos a capacidade de fazer nossas escolhas valerem a pena. Não esqueceremos tão cedo o que é ser um fera. Através da minha boca eu deixo que o poeta curitibano Paulo Leminski encerre esse discurso: “isso de querer ser exatamente o que a gente é ainda vai nos levar além”.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Porque eu vou continuar.
Eu vou continuar com cada molécula da minha constituição básica.
Ah, eu vou.
Alguma coisa eu aprendi
Desse teu ímpeto primaveril.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Ponderações pra levar a vida

Peguei da depressão a única coisa útil que ela verdadeiramente tranca dentro de você: o silêncio. Silêncio traz calma, autoconhecimento. Quando a boca se cala, o interior tagarela. Da tagarelice interior e autorreflexiva virá o silêncio. A mente desiste e torna a descansar.
Isso tudo porque a depressão é como estar preso em um labirinto com paredes de consistências diversas - macias, pegajosas, lisas -, mas sem nunca a surpresa que não o mero tato do cego que não consegue escapar.
O labirinto é a massa cinzenta do pobre coitado. Desesperado, ele pensa - pensa como se estivesse correndo - e é de pensar que seu labirinto soergue novas paredes, fazendo dele mais perdido e sujeito a armadilhas como nunca. Automutilação, que é o descarrego inconsciente da própria frustração. Autorreflexão, que é como se tudo que interessasse no mundo fôsse apenas seu pensamento ególatra. Autocomiseração, que é isenta de definições. É assim que o indivíduo, em um lento processo que toma horas e dias e meses, vai-se afundando em si mesmo. Vai cegando.
Desse labirinto só se sai de duas formas: morto de si ou quase morto e trapaceando. A primeira dispensa explicações. É um ato solitário de revolta, de não-submissão. A segunda é a mais covarde, é a fuga pelo caminho mais fácil. É como escalar o labirinto e procurar, sobre os muros, alguma luz. Tentar desse jeito nem sempre dá certo, é claro. As luzes sempre têm caráter hedonista e pouco moralista - é assim que os jovens são arrastados para o que se chama de imundície do mundo. Deus não há. Leva um tempo para consertar - isso se for possível - o que vier nessa fase.
Depois de escapar, resta a mera consciência de missão cumprida, de batalha vencida. Quanto à guerra, não se atreve a mensurar...

Obsidiana

Esse desespero lhe caía como uma máscara de obsidiana - pesada e grotesca. Era necessário se desesperar com mais graça, refletiu. Era necessário guiar todos os outros.

Natalino

É Natal na tua terra. Nasce lá tua nova e triste vida; morre aqui tua vivacidade.

Planta do pé

Cruzarei o seu corpo de Norte a Sul com palavras exultantes. Correrei léguas com os lábios, percorrerei vidas diversas em ti com os olhos. Sem nunca, quem sabe, questionar.

Apogeu

quer chegar ao topo, mas não sabe o que quer depois. talvez seja só pela vista.

Desvairada

quero um lugar junto à janela,
onde a alma se permita dançar.

Feedback

Beber minha seiva e retroalimentar meu ser.

19/11

-Morreu de quê?
-Morreu de si.

sábado, 20 de novembro de 2010

Corpo fechado,
coração blindado,
alma inerte.

Lei Máxima

É preciso só ignorar para despertar um poeta.
Uma verdade dita cem vezes vira banalidade.
Sei disso tudo sem ter vivido propriamente: meu ser transcendental está propenso a gastar horas só imaginando.

Aurora

É mesmo necessário que partas?
Já arrependi-me do dia que ainda não chegou
E que por mim nunca virá.

Teu nome é só peso de papel,
poeira por sobre o paleto preto.

Antimatéria

Hoje é o dia seguinte.
Hoje é só o dia seguinte.
E não há (des)consolo maior que saber que no dia seguinte não há futuro,
mas o futuro é cheio de dias seguintes.
Ser passional,
cheio de caprichos.

O Gênese da Regressão

No ínicio, eu era nada.

Depois, eu era ninguém
Fui feita algo
fiz a mim mesma alguém
eagoratudoqueeusouénãosermédica

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Aniversário



Foi envelhecendo e perdendo aquele jeito suave de levar a vida, carregar os anos.
Aprendeu línguas novas, tropeçou nas ruas, namorou, casou e descasou. Suas mãos foram enrugaram, caíram-lhe muitos cabelos e os que restaram perderam a cor.
Os passos incertos da juventude lhe renderam aquilo ali mesmo. É isso que dá se deixar levar pelo acaso. "Pra quem não faz questão de nada, qualquer coisa tá bom", dizia alguma dessas pessoas que passaram pela sua vida sem deixar muitas marcas. Mas a frase tinha ficado, pelo visto.
O reconhecimento que esperava ter, poisé, não o teve. Foi tudo queda, foi tudo derrocada. Agora que fugia pra longe daquela vida, sentia um estremecimento tomar conta da sua pele. Arrepiava. A paz que conquistara era oca. "O que vamos fazer agora, hein?", disse para o labrador chocolate aos seus pés, que tinha os olhos verdes e tristes e levantava a cabeça com desânimo.
É.
Fora perdendo aquele jeito alegre de se levar a vida.

sábado, 4 de setembro de 2010

Revolta

NÃO, SAIA DAQUI!
EU NÃO QUERO ESTAR AO SEU LADO.

Eu não acredito no seu deus,
Eu não sigo suas convicções.
Eu não quero ouvir nem a sua voz
Muito menos suas reclamações incessantes.
Eu quero estar só comigo mesma
e acordar como, onde e quando quiser.
Eu quero uma liberdade por completo
Porque pela metade é populismo da sua parte.

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Enxaqueca

No princípio, era uma corda e uma viga; um relógio e uma gaveta; uma janela e o sol; um canivete e um banheiro; uma passada e um ônibus; três caixas de antidepressivos e uma garrafa de vodka. Em comum, a acidez dos seus caminhos, a toxicidade das ideias, o envenenamento da alma. Dê-se satisfeito com uma sobrancelha levantada que a expressão geralmente é vazia ou escondida pelas sombras.
Tudo acaba seguindo um roteiro pouco diverso. A inteligência nos sufoca: o braço joga a corda por sobre a viga. A família nos esquece: a mente visualiza o revólver escondido. A cidade nos ignora: é observando-a de cima que o ser aprende. O amores traem nossa confiança: a lâmina que serra o corpo é a mesma que apunhalou o coração. Os amigos caçoam de um tropeço: cai-se não só em todas as partes da rua, porém no passado. A vida torce mais o seu pescoço: movimento similar ao desrosquear de certas tampas.
"Mas por quê?", pergunta o senso comum. Oras, que pergunta imbecil! Porque tem de ser. Já não nos perguntamos mais, mas alguém tem que morrer. Não estamos prontos para a nossa sociopatia. Alguém TEM que morrer. As pessoas estudam tanto e nada sabem; trabalham e nada constroem; vivem e nada apreciam - alguém HÁ de morrer.
Um dia, um pobre coitado que não come, não dorme e não ama decide morrer. Afinal, ele não come, não dorme e não ama, mas pensa. E é só de pensar que o seu cérebro rói e corrói. Foi-se a visão: é sempre noite. Foi-se a memória: é sempre amargo. Foi-se o tato: tudo frio e nada dói. É uma vertigem viver nesses dias, é acordar na madrugada enquanto todos dormem. O que esperam disso? O pobre coitado levanta e arrasta suas correntes consigo pelo castelo. As mãos não sustentam violão, livro ou caneta, os olhos ardem com as telas. Ele sabe que há muitas maneiras de falhar - não só na vida, contudo em sua própria desistência - e jura que desta vez vai dar tudo certo, que vai se dedicar pra isso. Jura que não vai ver um Outono de novo, que vem dali a dois dias. Jura que não há nada para fazê-lo ficar.
"Deixem-nos morrer", sussurram à noite. E o tormento continua, sem sentido. A dor é frontal e pulsa: enxaqueca.
(...)

XII

Deitarei para o além os meus óculos
Ao menor sinal de sua aproximação.

Afino os meus instrumentos
Com a dialética podre da vida.
Contesto os meus argumentos desgraçados
Pelos cantos das descidas.

E de uma coisa teimo em não me arrepender
Quando acerto os passos com o vagar urbano:
Ser egoísta ou altruísta é nobre
Como qualquer coisa no mundo.

22/03/10.

Ambidestria

Despi-me, neste momento, de todas as vaidades para considerar as efemeridas do que é temporal.
No sótão, encontrei um pequeno par de pés flutuando a cinquenta centímetros do chão. Sentei a um canto, em choro convulso e desolado, sabendo que não há consolo maior do que deitar para fora a vida. Meus olhos queriam ver outra coisa, mas era a verdade que oscilava em movimentos pendulares a minha frente - não havia saída. Minhas mãos queriam tocar algo, senti que talvez eu devesse descê-la. Eu queria, mas me desencorajava sentir aquela pele fria e branca colada aos ossos, aquele mármore catastrófico.
Fechei os olhos, baixei a cabeça e abracei os joelhos. Aos poucos, fui descobrindo que era ambidestra. Quem sabe o que é, entenderá.
(...)

Any

Vai ser qualquer dia desses
Ensolarado assim.
Vai ser numa vida vazia como esta
Através de um gesto banal como aquele.

Perfazendo olhos como estes
E carnes como estas,
Perfurando vidas alheias
Sem compaixão.

Vai ser qualquer dia desses
Eu sinto
qualquer hora destas.

26/06/10

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Pós-Getulismo

Saio da vida
pra sumir na História.

Enfarte

o coração não perdoa.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Depressão em Retalhos

Era uma vez um dia numa cidade chata. Chata porque era russa. (E era fria. E tudo que é comunista é duplamente mais chato. Há filas pra tudo.)
Naquele dia, conheci uma nova modalidade de tristeza. Intermitente, intervalada, intercalada com sussurros sublimes de nada. Percebi que era ela a nossa última chance pro nosso surrealismo obsceno. Essa tristeza tinha sofrimentos análogos, condescendências amenas. Fornecia daquelas esperanças a que chamo "ermas": vinha uma por vez e se apossava dos terrenos inférteis do meu coração.
Não se surpreenda, mas arranje melhores companias: minha persona é fruto de longas horas de autocomiseração improdutiva e contraproducente, excessiva, inconcluída e inconclusiva.

Drama Moderno

eu

sofro,

sofro
por todos vocês,



simultaneamente.

XI

um estrangeirismo diferente
uma discussão na qual não nos olhávamos
nos olhos e oscilávamos os corpos de um lado para o outro, transferindo o peso de nossa
desavença.

Aos Pensa-dores

corpo máquina
cérebro pensa-
dor.

estômago vazio
e o cérebro pensa-
dor.

o dinheiro é pouco
a vida é curta,
pensa-dor.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Estremecimentos da alma

vovó se foi.
mamãe vai chorar.

Depressão e Hipocrisia

Irmãs na dúvida,
Irmãs na dívida.

É aqui no coração que o cinismo
Atinge o auge.

Nós trazemos a doença.

domingo, 13 de junho de 2010

X

As pessoas deviam morrer depois do seu primeiro amor: o que se segue é só desgraça.

Insegurança

Mas você vai ficar comigo, não vai?
Diz logo, que a boiada passa destruindo o que vem pelo caminho.
Você vai ficar comigo, não é mesmo?
Repete bem alto, eles querem ouvir
E eu ainda não acreditei.

Meu anjo, me diz
Se mesmo com o rosto assim,
Lavado de lágrimas secas,
Você me ama, porfim.

Me encontra todos os dias,
(ei, me abraça direito)
E se preocupa comigo
E canta pra mim.
Eu quero ouvir a sua voz
Hoje à noite.

Me faz perfeita, Rafael.
Me faz completa, Ezequiel.
Me beija, Gabriel.

Case comigo
uma vez
Case comigo
duas vezes
Se afaste de mim
três vezes
E a última será a morte.

A morena que vinha e ficou

Aquilo não era o Jaçanã do Trem paulista das Onze nem o Copacabana desagradavelmente rico e carioca, mas o bagunçado Andaraí. O guarda Freitas tinha problemas todos os dias, de todos os tipos. Seus ombros arcavam-lhe o ar e, em vão, ele estufava o peito para aumentar a autoridade.
O problema de hoje era a gente do Durval, que ainda não descarregara o maldito caminhão. Foi ao se virar para fiscalizar o andamento do processo que ele se deparou com a poesia de uma Ipanema que se materializava a sua frente. A morena que vinha e que passava atendia, merecidamente, por Capitu. Com megera elegância, conquistava toda aquela homarada que se aglutinava e pulsava ao seu redor.
Com Freitas, não foi diferente. Tudo nele era um suor seguido por leves tremores e ele escondeu as mãos nos bolsos. Capitu sempre soube da força brutal que exercia e, premeditadamente, ensaiou um virar de esquina, com o gingado do samba nos quadris. Contudo, estancou. Ao passo que conduziu Freitas com seu olhar, disse-lhe, em tom médio:
"Hoje o almoço vai demorar um pouco, bem."
Há mais de dez anos, era aquela a morena que vinha e ficava.

sábado, 5 de junho de 2010

Segunda Chance

Eu, que não tenho alma, considero mais as coisas do ser do que tudo.
Eu, que não tenho coração, vejo-o bater meu em outras pessoas.
Eu, que não tenho destino, vago por linhas bem torneadas.
E assim amarei, sem poder, mas amando.

Máquinas de Café

(Sugiro a leitura do poema com o acompanhamento da música. Faça como quiser.)






(A gasolina tem um odor maravilhoso,
Mas o orgasmo é o café.)




Nossos músculos são de aço
Contra o frio cortante.
Nossas vidas são só um passo
(abismo).

Nossos corações são todos blindados
E bem acabados
E polidos no esmeril.

Nossos modos são aristocráticos
Nossas mãos são tão cheias de anéis
que nos perdemos nos entrelaçares e nas contas,
Nossos olhares tendem ao nihil.

Nossa marcha é constante,
Nosso ritmo é frequente,
Nosso fogo é líquido em mil maneiras diferentes.

Nossas costas são disciplinadas quanto ao peso carregado,
Nosso passo não se perde.
Nossa direção é bem segura perdeu.
E nenhum de nós se

Nossas paixões são vidradas,
Nosso auxílio é a dependência,
Nossa vida é a permanência.
E cada vez que nós pensamos
É porque gostaríamos muito de esquecer.

Estamos recheados de coragem
Porque é assim que é quando não se tem
Mais nada a perder,
Só a vergonha.

Nossos amores são concentrados
E bem focalizados
Assim nunca esqueceremos
Seus rostos.

Quanto ao café que nos move
E nos faz cantar e versar
De face inexpressiva
Com uma batida de mil de nós
e nossos corações metálicos,
É esse o que nos põe em ordem,
De volta aos eixos.
É isso o que nos faz menos infelizes,
Mais criteriosos, mais urbanos...
É essa a poção mágica da verdade.
E assim, nós restaremos:
Os dois pés no chão
E os olhos de mercúrio caídos conosco.
Nós sabemos
que a noite é uma mera convenção.
Nós sabemos
que nascer é traumático: ter vindo ao mundo foi o nosso azar.
E nós pedimos um pouco,
Porque nossa ambição é pequena.
O destino foi lá e nos deu menos,
Então nós sorrisos com um sorriso amarelo e tomamos mais café.
Passou-se um tempo e tiraram de nós o que tínhamos,
Então gritamos e choramos e não nos ouviram, porra.
E assim nós restaremos:
Os dois pés no chão,
O café
E a batida de nossa música preferida ecoando através do chão.
Nós sabemos
que a noite é uma mera convenção
E que nossos cérebros são o motor
que nos leva à morte.

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Loucura

Gente comum tem em todo lugar.
Se você reparar, são todos bem iguais.
A vida brinda com tristes coincidências.

Já a loucura é linda,
Entenda bem.
É uma sabedoria que é além do ser,
Trancedente à nós,
Independente da existência.

Hoje à noite, abrigarei em minha casa
Toda sorte de assassinos perversos.
Num abraço apertado, terei cada suicida, individualisticamente.
Nas minhas camas limpas, deitarei os maníacos-depressivos.

Ao louco não se contradiz, se obedece.
Talvez a humanidade pudesse ter aprendido isso antes,
Com mais graça e ternura.

Virão comigo os pedófilos inveterados
E todo tipo de sociopata.
Porque nós conhecemos bem a indiferença
Assim como
nos conhecemos.
Casarei com todos os psicopatas sádicos,
Que esses não tem coração, como eu.

E você, leitor, que acha isso tudo tão absurdo
Quanto logicamente insano, saiba bem que
Só é saudável quem não foi suficientemente analisado.

Pacto Comum

Demorei um tempo da minha vida para atingir esse pacto comum com o sarcasmo. Eu com ele, o escárnio comigo. Nunca mais fiquei sozinha.

Pretérito Perfeito

Como que espontaneamente, quase sem a minha vontade, quase sem o meu esforço, amei. Segunda vez, amei. Só porque talvez não tenhas acreditado: amei.

O que é o verbete "epifania"

Essa tal de "epifania", fui descobrir bem mais tarde, era como se as moléculas de dentro do seu corpo se agitassem mais rápido e de maneira sincronizada, produzindo um prazer indizível. Com a mesma facilidade, elas tornavam a se desorganizar e a queda era rápida e efetiva.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Pouco coeso

pequenez ante a vida
e pé-ante-pé na jornada da auto-destruição.
sempre a vergonha de olhar no espelho
pelo medo do que os olhos encontrarão.

(a desistência da vida é feita de horas,
muitas horas)

tudo ver e nada doer
ou alegrar.
isso como se já fosse planejado,
ilusão!
os planos vem depois do fim dos sonhos.
paradoxo eis: os sonhos, que são bons, são sempre mal tratados.

as poesias que eu ganhei
somar-se-ão
aos dias que eu perdi.

a força hercúlea de um novo passo
contra a facilidade de despejar uma nova palavra no papel.

as Parcas sabem e dizem
"quanto mais perderás dos seus,
menos sentirá a falta deles, menos falará,
até não ser."

eu me alimento de esforços diários.

Conhecidos

Aqueles eram meus amigos, meus vizinhos, meus amores, meus irmãos. Eram todos loucos, insanos mesmo. Todas as noites, acolhiam meu perverso estrangeirismo e alguns deles me aceitavam estranhamente para sempre. Meus amantes mordiam a minha carne e gritavam nela a angústia muda dos meus dias, me envolviam com mil braços e derramavam seu pranto.
Sempre soube que tinha vocação para emudecer. Com o meu coração manutenido no grande manicômio dos meus verdadeiros conhecidos, colei os lábios uns nos outros e arranquei para fora a língua. Bem verdade que meus amores conseguiram que eu voltasse a abrir a boca para beijar, mas esta já estava oca.

A verdade é que aos loucos não se nega nada.

Lei da Recíproca Poética

Um poeta sem inspiração é uma pessoa comum.
A recíproca não é verdadeira.


Uma pessoa comum que pensa ser poeta
não é poeta - é só idiota.


Ser poeta é um estilo de vida, é uma maneira de ver o mundo.
Além disso, você precisa de sorte, muita sorte.
Sorte o suficiente para ser azarado ao mesmo tempo.



(E nessa classificação, eu só me encaixo, necessariamente, na última parte.)

Ceticismo

Minhas piores expectativas com relação ao Inferno
Se resumem a uma pia toda cheia de talheres
a serem enxutos.
Na verdade, é um verdadeiro balde deles,
Uma pia tendendo ao infinito.

É por isso que os possíveis diabos não me assustam
tanto
mais.

Aos anjos o que é próprio dos anjos

O anjo mais cruel que existe foi aquele que caiu das nuvens do seu senhor e teve as asas arrancadas no inferno à lâmina quente. Seus vícios eram como os meus, seus pecados também. Nos seus lábios eu li o futuro entre cortes, nas suas mãos eu apreciei o sofrimento.
Cansado das andanças ermas pelo deserto e pela cidade, o invisível rubor da indiferença subiu-lhe às faces. Trazia na pele encouraçada de poeira as cicatrizes já abertas, tal o martírio que lhe pertencia.
Pobre! Nem o Diabo lho aceitava; sua Via Crucis era inútil. Fora sempre imperfeito nos seus caminhos, até o último de seus dias. E eram esses dias feitos de trabalhos sucintos, porém intermináveis. Certa vez, começou a cavar sete léguas por mão, de novo, até o inferno.
Todo o seu ser era maculado e nos seus olhos nem uma gota do sagrado antigo lhe restava. Ele sangrava pelos poros.
Foi naqueles olhos que eu jurei ver o tormento eterno. Nunca conheci quem amasse tanto.

Soneto à Bebida, ao Amor e à Trova

Pegarei na tua mão com escusos
Propósitos por detrás dos meus dentes.
Sacodirei teus ombros que são como fusos
Tais quais tensos por debaixo dos sóis mordentes.

Levar-te-ei ao meu império de confidências
E então despirei teu orgulho à meia-noite.
Mas se teus passos não vêm nas minhas cadências
Vejo então que o amor não durará o pernoite.

Meus dias se alienam no bom vinho tinto,
Prova que o que digo é real como sinto
E o que sobra é a chance da vida nova.

Não largue do seu amor até vir o rum
E é em matéria de bebida, amor e trova
Que quem tem mais de um não dá valor a nenhum.

Mercúrio e Ferro

Disse o meu anjo, certa vez:
"Por onde andam seus passos, que não os vejo?
Ah, sim... Mas agora são de ferro - sim, sempre foram de ferro - com algo amolecendo-os por dentro ou por fora, ou ambos. Você sempre teve um mercúrio líquido nos olhos e agora ele é frio.
E há um vagar perdido, oscilante.
Quem é você, que eu não conheço mais?"
Então eu disse:
"Sou quem sempre era, quem sempre fui, quem sempre tive potencial para ser."
Dei as costas e andei; o anjo resmungou e sumiu em sua própria treva.

12

Doze anos e olhos abertos para o amor.
Daí pra frente foi só decepção.

Tudo, todos.

Qualquer coisa me faz ter vontade e saudades de alma,
À medida que o rebanho humano agoniza em dor.

Qualquer coisa me arrasta de novo à superfície
Com falsos pretextos que enganam todos como eu.

Todos os outros são eu,
Todos os eus são outro.
Na pele, eu sinto o alheio.

Todo o meu sangue é empoirado,
Toda a poeira minha é ensangüentada
Sem maiores pesares.

Todo o meu corpo é frágil
E todo o meu ser mais perdeu que ganhou.
Forte como você vê,
A minha tosse move a estrutura enferrujada,
O meu pesar enfeitiça meus olhos
E ninguém precisa entender, meu bem.

Oh, deus!
Tu, que não existes!
Se existisses, teria de dizer-me logo o
Porquê do meu ser,
Que parece ter dívidas a acertar
Com um mundo inteiro que é
Absolutamente anterior a ele.

Tudo em mim
É a dor que eu quero compartilhar
Como forma de redenção...
É o niilismo que se desprede do meu corpo como perfume
E assim tem sido drenada de mim a vida!

terça-feira, 4 de maio de 2010

IX

nunca será tao inútil a valsa de nossas vidas para a eternidade factual




nunca será tão farto o ranço e o sebo de nossos atos.

VIII

Os meus inimigos,
eu sei,
são todos tão atormentados quanto eu.

Testamento

Eu não quero apodrecer nesta cidade
Na qual já sou estrangeira.
Minhas raízes não vingarão aqui,
Porque meus amores são de longe.

A casa não pode ser minha,
Aqui não ficarei.
Ninguém, ora!, nunca pensou
nos sonhos que eu sonhei?

Eu sonho com campos floridos,
eu quero casas nas árvores
E alamedas diversas!
Seja como for, isso eu não vejo esta terra,
Daqui eu não me orgulho mais.

Querem me aprisionar, justo eu, que sou uma águia.
Querem me reduzir
E justo a mim, que vivo da beleza.

Nesta terra esquecida eu não fico,
Nesta terra de ninguém eu não hei de ficar!

VII

Ser poeta não é nunca ter infringido uma regra de semântica ou concordância.
Não ser poeta é nunca ter infringido dúzias de regras da vida real.

Atônita, aflita
Pela conquista do mundo
(egoísmo).

Eles, não nós

Eles vão tão lentamente
por onde quer que passem

E se arrastam sob nossa carne
E se derramam no nosso coração
E tomam conta do nosso corpo.

E eles gostam é do nosso sorriso,
Porque rigojizam na nossa inocência
E atrapalham nossas verdades.
Mas eu gosto é quando eles nos abraçam
E eu os admiro por algum motivo.

Eles nos amarão para sempre e nos farão monumentos
eternos na canção dos dias.

Eu os vejo todos os dias.

VI

Os sonhos de todos os seres humanos
Deveriam querer ser nuvem.

V

Eu tenho a peculiaridade infame
De ser aquela que corre atrás das próprias assombrações
E não o contrário.

IV

Meus tormentos continuam,
indefinidamente.
E assim eu me prolongo com
a minha mente ensaboada
de café e náusea.


E o dia é lindo, meus amores,
carpe diem.
E os dias são lindos, meus inimigos,
me destruam.

sexta-feira, 30 de abril de 2010

Mono

Mono é um suspiro
e o dar de ombros:
não deu.

Máquina de Café

Era sempre eficaz a
Máquina de café,
Oásis de noites mal-dormidas.

Era sempre tão vilã a
Máquina de café,
Reduto dos desesperançosos.

Real, era sempre tão real a
Máquina de café
Produto de uma má-sucedida
Revolução Industrial.
(E no seu líquido selvagem e marrom
O sabor acre e salgado da ferrugem e da fuligem
De todos os dias.
E nas suas moedinhas tintilantes
Ao menos um negócio bem feito
E a garantia de insônia.)
Na máquina nós confiamos.
(In machine we trust.)

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Drama do Vigia

Não era mestre em nada,
Era doutor de porcaria nenhuma.
Escutava seu samba com o CD riscado
Nas músicas que mais gostava, em suma.
Nos olhos já vidrados
E guiados pelo café,
A agitação da vida interior
De longos domingos sem fé.
Mas era sempre o mesmo senhor
Qu'estava ali.
É,
Era sempre o mesmo humor
Que restava ali.
E, de tempos em tempos, seus filhos lho ligavam
Com a desculpa despretenciosa de que o dinheiro acabara.
Porque, de tempos em tempos, ele enchia a cara
com o mesmo pouco dinheiro que lhe pagavam.
E era sempre a mesma vida levada
Por um homem que não admitia viver sem sua mulher.
Sempre a mesma vida pesada
De quem não sabe o que quer.
Acredite,
era sempre o mesmo senhor
qu'estava ali, é, era sempre
o mesmo humor que eu sempre vi.
Só e com seu pingado cinza,
Ele guardava os carros de sua cidade cinza.
Transtornado pela falta de alma,
As luzes que piscavam dilatavam seu humor ranzinza.
(E era sempre o mesmo senhor qu'estav'li.)
Assim como o CD riscado -
Riscada era a vida nas partes poucas que gostava,
Sendo tudo mais entediante
Do que deveria, por outro lado.
Ele nunca descansava da vigília
Mesmo até do alto do seu prédio, com o fog londrino.
Um dia, ele foi até a borda
E caiu retamente para voltar a ser menino.
15/04/10.

Sussurro

Porque do amado só peço que esteja comigo.

Se for bonito e eu cegar,
Se tiver boa voz e eu ensurdecer,
Se só me ouvir e eu emudecer,
Se tiver pele boa e eu perder as mãos
E até as pernas, de forma que só lhe seja peso,
Saberei, então, que não é pena
Isso é amor.
12/04/10

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Amor a longo prazo

Agora, como nunca, amo-te.
Assim que teus olhos passam por este ponto,
Torno a te amar mais que nunca.
Agora, como sempre, amo-te.
Não no fim ou no início, mas no sempre irremediável que há nas lembranças.
Agora, acima do tudo e do nada,
E com a força poderosa do que é
inevitável e há de ser,
Amo-te
indolor.

Ousadia

Amei, amei e morri.
Foi assim que vivi
e é assim que ouso dizer
que vivi.

Amei amores
que nenhum mortal
ousa alcançar.
Amei amores de profundezas e intensidades
desconhecidas.
Amei como quem confessa ao ouvido,
Amei tanto que deus teve inveja
E, por ter inveja e não poder mostrar que peca,
Arruinou e condenou.
Amei com verdade no sangue
E quando disse que amo,
disse a verdade - não importando
o que viesse depois.
Amei de corpo e alma - descobri
que de corpo era mais fácil.
Amei não só com amor,
mas com raiva e desespero,
senão ousadia.
Amei e morri pelo amor.
Por alguns momentos, fui distante,
como quem ama ao longo de uma vida.
Por alguns momentos, fui presente,
como quem não quer deixar esquecer.
Amei, amei e morri pelo amor,
Todavia, hoje eu tenho a ousadia de dizer
que nunca foi em vão.
12/08/09

III

Deitai teus lábios nos meus, ressuscitai a canção da vida nova. O coração me é a batida, teus lábios são-me a melodia. E é na harmonia dos nossos corpos que dançam que eu encontro minha própria fé.
Minha religião é feita de noites longas. Meu dogma central sou eu mesma.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Insônia forçada

Sonha, pequena, sonha tanto
Que beira a madruga insone;
Relógios que não param.

Desafia o corpo,
Estica os braços
E torna a pensar
Na vida que não foi e que podia ser.

Imagina dias férteis junto ao mar e ao sol,
Com o mesmo corpo que maltratas agora,
Dando-lhe frutos de bem-estar.

Respira bem fundo à beira do abismo,
Quase tornas a desistir das ideias.
Adia, só adia planos
E anseia pelo que é bom e está por vir.

Anseio de insônia forçada,
Volta a escrever, menina!
Volta à tarefa de redação
Que não é poema nenhum.

21/10/09.

Cantiga para o dia raiar

Seremos um ao outro pela vingança
E estaremos ambos sedentes
Sem poder tomar parte.

Bendita sois vós, mentira,
Eu também tenho orgulho de partilhar
Da podridão dos meus dias.

Seus lábios nos meus,
deixai o infortúnio acontecer.
Seus lábios nos meus,
faremos o ódio crescer.

Pensando em você, meus dias se passam.
A canção é infinita e, na noite,
Veremos o medo ressurgir.

Seus lábios nos meus,
deixai o infortúnio acontecer.
Seus lábios nos meus,
faremos o medo crescer.

Arrastando-se em nós,
eis a morte
com um poder e um potencial
Que seduz e atrai.

Seus lábios nos meus,
deixai o infortúnio acontecer.
Meus amores são de verdade.
Seus lábios nos meus e
matarmo-nos iremos uns aos outros,
todos nós.

sábado, 27 de março de 2010

Autoflagelação

Chego em casa
e quero lavar-me dos dias.
A comunhão é feita de sangue.

Nas minhas veias sem sentido
pulsa o pecado;
No meu coração,
se encerra a alma.
A comunhão é feita de sangue.

Sou eu a campeã de causas perdidas,
A sonhadora com amores feitos de datas de validade.
Mas a comunhão é feita de sangue.

Nos teus passos não há alento ou serenidade,
No teu sorriso - gesto único de soberania -, nada senão escárnio:
A comunhão é feita de pó.

É a dor que eu quero compartilhar
Como forma de redenção.
E assim tem sido drenada de mim a vida.
A comunhão é feita de sangue.

E peço que me inclua nas suas orações,
Se é real esse poder de teu deus.
A comunhão é feita de pão.

Reze por seus pecados logo cedo,
Pois tua tendência é acumulá-los ao longo do dia.
A comunhão é feita de sangue.

Feche os olhos e veja!,
dos céus chove ácido.
A beleza não dura,
Mas a salvação eterna vem do sangue.

E é do sangue que virá o teu prazer ainda rebento...,
Abra os braços,
Que ali vem o teu salvador
Com sangue nas mãos também.

segunda-feira, 15 de março de 2010

I

Versar é quase demérito. Não há elogios. Não há compensação. É uma não-habilidade, uma desqualificação. Todo poeta sabe que versar exige o tempo que os outros melhor aplicam em coisas significantes. Apesar disso, é o que eu faço. Algum problema?

Escrever

Escrever é viver outra vida.
Todo aquele que tem o dom para a escrita é um sortudo azarado.
Que desgraça é quando as duas ou cinco vidas que ele tem dão errado, dão todas errado!

Escrever, amigo.
Eu escrevo porque sinto perder os sonhos.
Não sou tão boa quanto Pessoa, Quintana ou Lispector – até porque esses eram bons demais.

Eu escrevo porque me sinto fantasma.
Dizem precisar de mim, mas talvez ninguém precise realmente.
Eu sou completamente dispensável – e é nisso que tenho me concentrado ultimamente.
Tenho sono – e só sono – e durmo sem esforços e como sem esforços e subo e desço escadas sem maiores problemas.

Tenho feito como a dama européia cansada das nuances da corte:
Fecho os olhos e espero o cavalheiro me conduzir no salão.
(Sendo o cavalheiro ninguém mais ninguém menos que a Vida personificada).
E assim tem sido.
E assim continuará sendo.
Se alguém reconhecer meu talento algum dia, já estará bom. Também não faço questão de estar viva até lá se não reconhecerem antes.

Não, não faço questão de nada!
Se quiseres servir o jantar mais cedo na data do meu próprio aniversário
Para que não se atrase, que sirva!
Sou gente, não empecilho no caminho dos outros.

Se me perguntares “vais bem?”, como perguntas aos seres humanos, não aos empecilhos no seu caminho,
Eu respondo que “sim” ou que “não” ou que “não sei”, que se soubesse eu dizia.
Mas como disso eu não sei – e há muitas coisas que eu não sei –, eu digo que não sei e ponto final.
Há sim como não se saber o estado das coisas, inclusive de si próprio!
Eu bato o pé nisso, embora as pessoas não entendam...

Menina-dos-olhos

Olhos brilhantes. Ela mexe os dedos dos pés por dentro dos sapatos. Olhos brilhantes. Ela quer dizer alguma coisa. Olhar fixo. Ela sorri. Há um sorriso nos lábios. Um sorriso maquiavélico. Fecha os olhos e respira com satisfação. Naquele único ato, está se vingando do mundo inteiro. Está privando a própria presença e genialidade de milhões de pessoas. Ali, tem mais poder que Deus. Está tão alta que não pode mais descer de seu trono de poder.
Sorri, alegria doentia. Nunca sentiu tanta satisfação no mundo, nunca sentiu tanto prazer. Joga a cabeça para trás. Ela roubou as rédeas do seu destino. Sabe que todos ficarão boquiabertos quando souberem que ela teve coragem. As mãos se traduzem no gesto irônico da reverência e então se erguem bem altas. Os olhos abrem. Brilhosos. Então, um mergulho perfeitamente ensaiado de 60 metros.
(Não se preocupe, não é um problema. Antes do quinto andar, ela já terá tido um ataque cardíaco.) Ouve-se um único baque. Os vizinhos vão espiar, assustados. Pareceu tiro. No rosto, o escárnio estampado. Ouviu-se um único baque. E dentro de todos os corações, a aflição. Olhos inocentes são tampados, assim como os dela ao chegar da sirene.
Muitos jamais entenderão o que é o suicídio.

Calma

Você me dói no coração.
Você me machuca na face distorcida,
Mas você me dói no coração.

Não em outro lugar,
porque não permito.
Não na mente,
porque esta já não sente.

Calma.
Você é permanente,
dói no coração

Respiro e dás-me calma.
Amor que dói no coração.

Sei das coisas como quem está para morrer.
Fecho os olhos como quem tem a certeza de um fato.
Debalde!
Não morro, nem te encontro em sonho ou outra dimensão.

É a calma.
Recito um mantra ou dois.
E deito na calma que vem depois.

Contudo, a ausência, irmã da calma,
me traga como a fumaça do Dono da Tabacaria.
E do mesmo jeito que fez com você,
sou arrastada para lugares gélidos e plácidos,
lugares de calma.

Então, calma.
O barulho dos meus pensamentos
não interrompe a vibração da calma,
da alma.

Ausência, angústia e calma.
Não se escapa de nenhuma.

Medito na paz ou na dor
da minha caligrafia.

12/07/09.

Os Mendigos da Praça

Minhas preocupações são como mendigos às portas dos outros.
Ninguém se preocupa com elas – raramente alguém chega a olhar em seus rostos sujos.

Mas quando chegam à minha porta,
Abraço-lhes as feridas, as mentiras e os maltrapilhos;
Beijo-lhes os pés sujos de terras e frutinhas;
Alimento-os com novas reflexões infrutíferas;
Visto-lhes com novidades estarrecedoras.

São preocupações velhas tornadas novas para sempre, então, as que tenho.
Contudo, ainda são sem teto, ainda são sem lar.
Não, não podem morar em mim: são muitas, são todas, são uma multidão das minhas nulidades múltiplas multiplicadas por cem.

No fundo, bem no fundo, eu só posso dizer se gosto ou não gosto.
Delas, em si, não gosto não, no entanto não o direi para os que as ocasionaram.
Não, nunca direi que não os gosto.
Nunca me arrependerei de alguém ter-me botado mais cabelos brancos na cabeça,
Porque talvez não tenha dependido deles ter me botado mais cabelos brancos na cabeça.
Talvez devesse ter sido – assim foi: eu sou naturalmente paranóica com coisas que não posso controlar.

Paranóicos sempre têm muitas preocupações.
Muitas preocupações batendo-lhe as portas todos os dias, meu bem.
Acho que devemos apenas fechar os olhos e descansar por enquanto.

19/09/09.

As Cartas Certas

Viver o poker,
Jogar a vida.

Quando jogo poker,
Fecho os olhos e ainda vejo o jogo acontecendo.
As cartas dadas, os olhos trocados, os goles de uísque, os companheiros agitados com
Sinais que significam qualquer coisa que me interessaria se eu soubesse o que são...

Quando vivo a vida,
Fecho os olhos e ainda vejo a vida acontecendo.
Os blefes, as rugas, os empurrões, a fumaça do cigarro, os inimigos com seus
Sussurros e olhares cerrados que significam qualquer coisa como escárnio.

Poker vivido,
Vida jogada.

(Sim, é de mim que falam.
Pois falem.)

30/09/09.

Ceifadores da própria existência

Doce safra de ceifadores da própria existência,
Tua presença é silenciosa como a noite.

Eu me junto ao grupo com o peito aberto, perfurado por um anzol
E a luz de dentro saindo e se extinguindo pela ferida.
Choro agora, como todos os que não choraram antes,
A vida pesada que tive, puxada pra baixo por qualquer coisa extra-gravitacional.

A luz do peito se extinguindo.
O amor declinando.
A vida dando seu último recado.

Eu mergulhei em milhões de pensamentos desconexos
E saí convenientemente enxuta – meus pensamentos ficaram por lá mesmo.
Na melhor das hipóteses, poupei-me das preocupações insólitas que são os pensamentos.

Por meses, caro amor estrangeiro qualquer, eu sobrevivi a um deserto repleto de infernos emocionais.
Deitei a cabeça no travesseiro e esperei passar.
(Esperei que aliviasse, ao menos, mas não passou.)

Quebra-cabeças.
O pau quebra-cabeças quebrando a minha cabeça enquanto tento dormir.
Só acordo atordoada – sim, é assim que tem sido.

Quem sabe, uma vida de misericórdias aguarda por mim,
Mas, enquanto isso, juro padecer por conta própria, somente.
(Quem sabe se não estará lá meu anjo?)

Doce safra de ceifadores da própria existência,
Tua presença é silenciosa como a noite.

E a cada queda eu juro já não sentir mais dor.

Socorro Imediato

Vede no que vós me tornastes, depois de tanto desprezo e dedicação:
Sou a poeira invisível nos seus ombros a lhe fazer peso ao andar;
Sou a pedra mágica que aparece somente para lhe fazer tropeçar.

Se não vos contentais nem alegrais com isto, saibas
Que fui o último coração humano a bater por estas terras.

Eu sou o último coração humano a bater por aqui
E no meu gesto de ajuda há um grito de socorro,
E no meu grito de socorro há um gesto de ajuda.

Se queres conhecer-me por inteiro – tão inteiro
Que terás de duvidar depois – ides ao açougue
Que lá serviram muitos de mim, seres humanos,
E olharás nos meus olhos vazios,
E verás o meu sofrimento,
E sentirá o sofrimento do mundo, –
A humanidade inteira em pensamentos e ladainhas convulsionantes –
Como eu tenho sentido e sido sujeita.

Então, terás medo (e muitos o têm)
E perguntarás baixinho
“No que me tornastes?”.

Expressão Máxima do Surrealismo Pessimista

Nada mais de mim tem sido eu mesma.
Conheço-me por cópias – cópias fielmente espalhadas pelos cantos da sala.
Sinto um arrepio percorrer o corpo como o último respiro do doente no hospital
Toda vez que toco o frio da minha própria mente.

(Erro.
E erro de novo.
Só por hábito.)

E então meu olhar torna a cair até revirar-se para dentro
E o que vejo é apenas o preto – o mesmo preto dos meus dias seguintes.
Abraço-me em uma esperança vã
Com uma tentativa falha
De alcançar qualquer coisa.

(Morro e torno a morrer.
Durmo e torno a morrer.
Morro e torno a dormir.
Durmo e torno a acordar.)

De manhã amanheço,
De tarde tardo,
De noite ardo,
Tal mal que padeço.

(A vergonha de não suportar mais o caos interno
Nem entender que significado pode ter uma risada nesses dias tenebrosos
Me perseguindo em corredores silenciosos e infinitos.)

Sofro com um incômodo direto na nuca
E algo como mãos invisíveis aperta meu pescoço.
Quando acordo, sou eu mesma me enforcando com os lençóis que outrora me cobriam por vontade própria.

(Na rua, vejo pessoas andando de costas.
Na vida, sou eu quem senta na poltrona de costas para a frente do ônibus
E vê tudo passar mais rápido
E só olha pra trás, pouco entendendo.
Fecho os olhos e vejo círculos vermelhos.
É aí que enjôo.
Vomito e naufrago.)

17/10/09.

Onerosidade

Por algum lado,
Não me sinto inclinada a qualquer proposta.

E tu, tu que simulas bem, minha criança,
Tu tens o direito de encontrar o amor,
Mas não a obrigação de aceitá-lo com naturalidade.

Espontaneidade custa caro, criança.

II

(...) Uma pequena parcela de tempo do dia dedicada aos meus dedos finos. Analiso-os com desprezo. As unhas que eu parei de roer voltaram a ser nervosamente estraçalhadas novamente. (...)

Pelas Bordas

Leva um tempo para descobrir que isso absolutamente NUNCA foi uma questão de escolha. Eles vêm e pelas bordas eles se vão. Tão longe, tão perto. São só ondas geradas por uma pedra atirada contra o lago, tendo como objetivo predileto alcançar os pés da menina que lhes desperta à vida novamente. É esse amor sutil que todos deveriam almejar e ter, somente esse. Eles vêm e pelas bordas eles se vão.
Digo que é assim que deveria ser porque já fui tudo, sei como é ser cada pessoa e escrevo! Se quiser tentar, ainda assim, dou-lhe o último aviso prévio: não há glamour algum em ser. Se puder, não seja, só inspire.
Por esses e por outros caminhos, minha alma naufragou, até estancar na praia idílica do Sonho. Minha consciência alternava entre o som e algumas imagens fracas do real. Bendito seja o nada absoluto, completo e vago de dormir!
Isso, contudo, é só para quem sabe que todos os caminhos levam sempre à mesma idéia insone - "mais [funda] que a morte" - com desejo lacrimado nos olhos e café instituído na boca.
(...)
Meus rituais matutinos começam com essas divagações absurdas, desconjuntadas, porém extremamente sofisticadas.

Corrente

A vida toda como erro. Cheirava a erro. Tinha gosto de erro. Levemente agridoce. Era essencialmente extra dimensional.
(…)
O tempo passava rápido naquelas horas. Tinha convicção plena de que passaria pelas cinco horas da manhã sem sentir e começaria um novo dia sem ter dormido. Gostava de desafiar a si mesma quando não havia outras escolhas.
Fato observável pela escolha do curso que prestaria caso passasse no vestibular. O mais difícil.
Mas, onde eu tinha parado mesmo? Ah, sim. A vida toda como erro. Forte como erro. Inesquecível como todo erro.

Livro Apócrifo da Epifania

A idéia veio-me com aquele ar de renovação que toma grandes proporções e se torna uma espiral ascendente que, de repente, nos bate ao rosto e nos impele a novos caminhos gloriosos. Contudo, pelo que eu entendo, a idéia não tinha é nada de fantástica.
De todo modo, prosseguiu com a fantasia idealística digna de uma atuação degradante.

Deboche

Adquirira um desses defeitos congênitos que não larga a gente por nada nesse mundo: ser educado e tolerante. Já de longe era identificável sua parcela com o ridículo.

Comédia em um Ato

Fiz uma sessão de cinema para assistir a minha própria tragédia. No entanto, a pipoca ficou fria e o suco, aguado e quente. Não assisti a porcaria nenhuma. Foi só patético.

Caminhos Tortuosos

(…)
Ninguém me ensinou nada sobre essa vida tortuosa que me deram. Peguei o que tinha no meio do caminho e fui adiante, vestindo maltrapilhos e ainda assim amando aos pobres. Disseram que era loucura, porém disso eu já sabia.
(…)

Intervalo de Pensamento

Por alguns momentos me iluminava a idéia de que todos aqueles homens estavam ali por mim, se submetiam aos meus caprichos por vontade própria, escutavam minhas palavras de forma mais atenciosa do que eu merecia.
Eu bem sabia que eram meus amigos. E que faziam aquilo tudo com medo da despedida. Ou o medo fazia aquilo com eles. Mas, entenda, eram homens. A situação toda expunha a dependência e a fragilidade no cerne deles. Eu era suas mães.
Ou Branca de Neve. Eles, os anões, presos em uma infância impossível e em parte bajuladores – sem saber como sê-lo – e grosseiros – pela prática com a matéria-bruta. Só que o meu destino era a maçã proibida, a pedra lapidada que circulava sem sentido diante de faces admiradas e mãos descuidadas.
Eram homens, ora. E nem um intervalo de pensamento poderia tirar aquilo deles, por mais que eu tentasse. Aquilo fazia deles qualquer coisa mais distante que uma parte de mim, do meu próprio corpo, embora também os fizesse meus amigos. Uma parte intocável da minha personalidade.
Nada que uma boa mágoa um dia não pudesse dilacerar, como tem sido tudo com a vida.

Sorriso de Intervalo

Tinha daqueles sorrisos amenos que não dizem nada, nem mesmo alegria. Não à primeira vista. Não em uma foto. Mas, ainda assim, não era ela. A idade era verde, imatura. Na parede, a tinta descascada. Aborrecia-me não saber o que dizer.
Eu gostaria de ter o dom de não falar nada e não perder o tato, contudo, eu falava, como qualquer um e o que qualquer um falaria.
“É uma pena.”
Ecoei no vazio daquelas paredes. Uma manifestação solitária da chuva chegou ao meu olfato.
Olhei novamente para o sorriso, brincando comigo. Fechei os olhos. Nada mais daquilo era real.

Leitura a dois

Tende ao desespero com o livro na mão.
Abre-o com energia, macula a clareza das palavras.
Grita por dentro, busca uma força para continuar a lendo.
Aperta-o com força, extinguindo a limpidez da poesia.

Tende, tende ao desespero.

Vira as páginas rasgando-as internamente,
Dói, oh, dói.

Ponto: uma contração junto ao peito, um dilaceramento inquestionável…
Vírgula: um nó na garganta.
Exclamação: a admiração de uma vida surpreendida (ao que nos concerne, o céu que nenhum de nós vê, a farsa que nenhum de nós tem sozinho…).
Interrogação: uma queda de 20 andares.
Reticência: a indecência, céus, a decadência…

Tende, tende ao desespero com o livro na mão.

E de leitura a dois eu entendo, sim, disso eu sei.
Dança um tango e lê um livro a dois, quem sabe no qual se dará melhor?
Se teu par for fiel, se teu par for capaz, sim!, será bom.

Mas das minhas incoerências só eu poderei me libertar um dia.
E, quem sabe, quem sabe se lá eu tenho poder algum sobre alguma coisa na minha vida
Ou ser boi e mascar a grama, mais nada.

Quem sabe se será bom, quem?
Diz-me enquanto é tempo, amor.
Diz-me que o tempo ao menos valeu a pena…

Leitura a dois: tendo ao desespero.

Pequenas Epifanias

Começa com um sorriso arreganhado e tirânico, mas breve. Seus olhos percorrem a sala e o seu raio de repugnância se alastra pelo ambiente. Naquela época, eu sentava no meio. Desenhava distraidamente esquemas da aula anterior antes de ver, não, de sentir aquela presença essencialmente má. Às vezes eu o via passar pelo pátio e, então, o meu coração se encolhia, oprimido.
As minhas mãos reclusas, as minhas unhas torturadas pela ansiedade, os meus esforços intuitivos: tudo se sentiu perdido no terror inaugural daquela manhã. Estremeci. Ele apenas deu as costas e começou a escrever no quadro. Adriana perguntou o que havia comigo e eu disse que nada. Àquela altura, já suava frio. Ela esperou por um longo minuto de silêncio e, insatisfeita, voltou-se para frente de novo.
Dentro de mim, eu agonizava aflita enquanto buscava por uma saída. Dentro de mim, eu forçava para os lados – talvez minha alma pudesse ter a propriedade e a conveniência de se tornar menos densa agora e se esvair pelos poros. Então, ele se virou novamente. Eu mal pude aproveitar o tempo para pensar em uma rota de fuga imediata, nem que significasse ir para a diretoria. Desgostoso, postou-se a frente da classe e torna a fitar os mais falantes, que se calaram em questão de segundos.
Contudo, foi em mim que seu olhar se fixou após frear no tempo como um touro desafiado em arena. Foi ao meu lado que ele veio, e veio com um sorriso torto depois de passar uma redação à turma, e se abaixou daquele modo asqueroso de sempre, e sussurrou com mel e veneno na língua:
Guarde a Matemática, mocinha. No final da aula eu te passo uns exercícios.
E só isso me transtornou logo de início, ainda que eu já soubesse, de alguma forma, a verdade. E, mais do que em toda a minha vida, era justamente por saber a verdade que eu temia. No final da aula, esperei o máximo que pude em completo estado de inércia. Adriana olhou para mim e naquele instante eu senti que precisava de uma desculpa, uma daquelas boas. Ela até abriu a boca, só que recuou. Interna e imperceptivelmente, ela recuou e se foi. Tive a primeira das minhas pequenas epifanias: ninguém nunca vai estar lá.
Dois minutos – eu e ele. Ainda estava aterrada no meu lugar, tentando me inclinar para trás na medida em que ele se aproximava. Dentro de mim, havia uma memória bem guardada e escondida de algo que eu não sabia direito se tinha acontecido. Algo se rasgava fundo na minha carne: comecei a sentir uma dor lancinante e fez-se sentir latejando uma parte do meu corpo da qual eu não tinha conhecimento. Eu resistia à ânsia intensa de vômito, o que pioraria ainda mais as coisas.
(Uma coisa que eu notei é que, neste momento, ele não suava, porém eu me desfazia em líquidos diversos.)
Eu gosto de crianças obedientes, sabia?, disse o monstro, apoiando-se na minha carteira, com seu odor fétido. Sua mão grosseira de giz passou pelo meu rosto enquanto todo o resto de seu corpo parecia se deliciar com o meu medo. De repente, apertou meu queixo e levantou o meu rosto: meu olhar caído para o chão o irritava. Levanta e olha pra mim, menina, eu quero que sinta a transformação, eu lembrei.
Não tive tempo nem maturidade naquela hora para responder-lhe com um tabefe na cara, como faria anos depois (Mas nossos encontros já são casuais demais, senhor, não acha?). Ele me conduziu brutalmente pelo braço – e tal indelicadeza não era de me surpreender – para ir até a porta. Trancou-a.
Sabe, eu gosto mais de garotos, e lá começava ele com sua seção confessional típica ao mesmo tempo que começava a tortura, porque me lembram criança. Agora você não entende, vadiazinha, mas vai entender algum dia. (Vadiazinha, penso eu até hoje, vadiazinha? Um dia eu o desafiei. Paguei muito caro. Mas o que é que leva um homem com mais de cinqüenta anos a chamar uma garota indefesa como eu de vadia? O quê?). Foi me encostando na parede ao lado do quadro, com o corpo de homem que eu também não entendia ainda. Aquilo tudo me pareceu uma maldição a qual eu já tinha sido destinada, embora não soubesse expressar com essas palavras.
Eu sei que você gosta…, e repetiu duas ou três vezes à medida que travava nossas carnes juntas numa união odiosa. Hoje, o pivô era o meu pescoço. Era fácil de esganar e, muito provavelmente, se tratava de um ponto que o excitava mais que o normal. Amanhã, eu descobri, sempre tinha um jeito de ficar bem pior amanhã. Era a segunda epifania.
Naquele exato momento, eu me vi em terceira pessoa. E fui transportada para uma cena de dias atrás, no mesmo local. Eu me encolhia como um feto, aflita, e as mãos tampavam os olhos em chamas. Eu não queria ver mais, eu só queria regredir à minha ignorância aos primeiros centímetros de altura. Mas as marcas no meu corpo não me deixariam esquecer nunca mais. Minha inocência havia sido desfeita em sangue pelo chão. Eu tremia, viajando numa espiral em direção ao meu primeiro inferno pessoal…
Ele me chamou a realidade ao meu virar e me agarrar pelos quadris. Eu nunca tive tanto nojo na minha vida. Virei o rosto para o lado do quadro e vomitei, ainda que ele me puxasse para si e me pressionasse contra a parede. Irritado, pegou-me pelos dois braços e me tirou daquele canto atrás mesa, tornando a me jogar ao chão. Levei dois tapas vigorosos. Subjugada, ele voltou a cometer o crime pelo qual eu tinha certeza que não pagaria. (Terceira epifania: a vida não tem necessidade de ser justa.) Entrava e saía com força. Ele regredira ao ponto animal presente em todos nós e parecia abraçá-lo de todo o seu íntimo. Ali, tive a minha quarta epifania: somos todos feitos de instintos.
Sim, era essa a transformação da qual ele me falava. Sendo sua prisioneira – tendo ele como meu cárcere – eu aprendia mais que em um colégio regular. A verdade do mundo, a verdade das pessoas. Eu nunca tive tanto medo em conhecer a verdade na minha vida. Dilacerou-me o peito e o resto do corpo, mas eu tive de aprender. E na marra. Enquanto eu chorava e me debatia, ele me dava lições valiosas e superiores aos murros e mordidas. Vivenciei, mais ali que em qualquer lugar, o mundo.
Quando saí da sala, quebrada em pedaços incontáveis, olhei para o céu e a luz me ardeu aos olhos. Os livros perderam a aderência ao longo do corredor; eu tropecei e caí após girar no ar. Meu corpo sofria de exaustão muscular grave. Eu não chorava mais porque não havia sentimento nem lágrima pra chorar coisa alguma. Então, mergulhei no ar novamente, entregue à derrota. Minha cabeça doía ao ponto de eu ter a leve sensação de flutuar. Céus, eu flutuava. Pequenos cordeirinhos e anjinhos dourados ao meu lado, eu flutuava. Mal pude acreditar. Mas daí veio o inspetor e seus passos pesados – e ele me recolocou nos eixos e me levou ao carro. Mal pude acreditar. O mundo se desconstruiu ao meu redor.
Naquele dia, sim, foi naquele dia que eu deixei de ver.

Miopia

Meus desejos se realizam continuamente em sonhos.

Deito na cama, tiro os óculos
(perco a razão)
e o que vejo é feito de emoções.
Vejamos, então, como vêem as crianças míopes.

O sonho daquela cadeira distorcida verde é ser verde e redonda
e ela o é em parte.
O sonho daquela porta grande é ser cor-de-madeira e com uma maçaneta,
ela o é.

Entretanto,
direcionei-me para minha cômoda e a vi mais claramente por estar mais perto.
A vi lilás – queria ser cobre.
A senti lisa – deveria ser áspera.
Bati na sua madeira com a ponta dos dedos – e é feita do mesmo material que deveria ser feita, porque nestas coisas o Criador ainda não inovou.

E dormi. E sonhei.
Eu era aquela cômoda, no meio de móveis quase todos perfeitos,
era eu quem mais se destacava em imperfeição.
Tratei de acordar, mas mesmo assim era eu, enredada naquela trama intricada, a mais imperfeita das criaturas.

O mistério das coisas tão real como o mistério das pessoas:
Miopia mergulhada em complexidade.

26/07/09.

Sobrevida

Beijava o cano. (Amor e sacrifício. Talvez irrepreensível desejo. Não, não, mentira: ódio e loucura. Egoísmo. Talvez loucura. Melhor.) Um respiro fundo sem qualquer significado aparente senão agonia e impaciência.
Beijava o cano, firmava as duas mãos no gatilho, sobretudo a direita, que ela era destra. Ombros rígidos. (Mas as fotos nas paredes não entendiam o porquê. “O que foi que eu deixei de dar pra essa menina? Por que, por quê? Meu Deus…”)
Olhar fixo, triste e encharcado. Boca recém e semi-aberta. Lábios secos, um gosto marrento familiar de amanhecimentos de outras vidas e desta, inclusive. Lágrimas pesadas demais e uma trilha sonora familiar no rádio.
(Faz-se acordes simples para uma combinação tão dramática.) Então, os braços pesam muito: cai e enferruja a estrutura de aço. É desistida e colocada de lado como uma boneca de pano. Os braços ao lado do corpo e as pernas abertas: a cabeça pende para trás. (A arma, inofensiva e tão culpada, tão cúmplice, continua num canto de sua mente.) Um pequeno sorriso displicente de nulidade, 5 segundos e o choro em avalanche.
O corpo sem-vontade cai para um lado qualquer: ela pára de chorar e observa o novo ângulo com olhos de criança. A miopia a torna alheia. A cabeça dói, ela sente uma pressão forte na altura da fonte. Vem uma nova onda silenciosa, com a dor incompreensível expressa no rosto.
A criança torna a naufragar com as órbitas pendendo para a sonolência e adultesce: leva as mãos aos olhos, paralelos ao teto. (Um desespero. “O que foi que eu…?”. E um filme qualquer na cabeça. Não, não é um qualquer, é um filme capaz. “Capaz do quê?” Capaz. Só.)
Passa as costas da mão por cima das pálpebras e aperta os olhos de mar que doem de sal.
(Há um incômodo no estômago, porém nada fará com relação a isso. Nem poderia. Geladeira nua, armários em estado de relativa dormência.)
A expressão, contudo, alivia. (A música não fora esquecida. Uma outra língua estrangeira falando dos mesmos problemas dela.) Sistema nervoso periférico autônomo parassimpático em funcionamento.
Então toda a vida é jogada no inconsciente. Gasta-se horas de puro empenho num desafio de blefes diabólicos. No final, nem o amor nem a loucura de Caio Fernando de Abreu: só o cansaço. Empate: vingança futura.
Durmamos agora. Em oito horas, sobrevida.

31/10/09

sábado, 13 de março de 2010

Abro com um pouco de Fernando Pessoa para melhor demonstrar meu estilo (como ele é, ou, em verdade, costumava ser desde a última vez que verifiquei): "não sou pessimista, sou triste". Há quem diga que há um pouco de Lispector dentro dos meus textos. (Que honra.) Pense o que quiser. Meu propósito é proporcionar experiências brutalmente - e o digo com toda a expressão da palavra - enriquecedoras ou nauseantes.
O que é o escritor senão um ator sem rosto, afinal? É talvez essa falta de visualização definitivamente material que crie barreiras para a Literatura e caminhos mais fáceis para os meios de comunicação em massa (leia: novelas da Globo).
Pois não se aflinja, amiguinho. Eu escrevo porque acredito que há coisas que todos deveriam sentir e crio meus próprios artifícios para que haja tal aprendizado emocional.

Hasta la vista, baby.