segunda-feira, 15 de março de 2010

Sobrevida

Beijava o cano. (Amor e sacrifício. Talvez irrepreensível desejo. Não, não, mentira: ódio e loucura. Egoísmo. Talvez loucura. Melhor.) Um respiro fundo sem qualquer significado aparente senão agonia e impaciência.
Beijava o cano, firmava as duas mãos no gatilho, sobretudo a direita, que ela era destra. Ombros rígidos. (Mas as fotos nas paredes não entendiam o porquê. “O que foi que eu deixei de dar pra essa menina? Por que, por quê? Meu Deus…”)
Olhar fixo, triste e encharcado. Boca recém e semi-aberta. Lábios secos, um gosto marrento familiar de amanhecimentos de outras vidas e desta, inclusive. Lágrimas pesadas demais e uma trilha sonora familiar no rádio.
(Faz-se acordes simples para uma combinação tão dramática.) Então, os braços pesam muito: cai e enferruja a estrutura de aço. É desistida e colocada de lado como uma boneca de pano. Os braços ao lado do corpo e as pernas abertas: a cabeça pende para trás. (A arma, inofensiva e tão culpada, tão cúmplice, continua num canto de sua mente.) Um pequeno sorriso displicente de nulidade, 5 segundos e o choro em avalanche.
O corpo sem-vontade cai para um lado qualquer: ela pára de chorar e observa o novo ângulo com olhos de criança. A miopia a torna alheia. A cabeça dói, ela sente uma pressão forte na altura da fonte. Vem uma nova onda silenciosa, com a dor incompreensível expressa no rosto.
A criança torna a naufragar com as órbitas pendendo para a sonolência e adultesce: leva as mãos aos olhos, paralelos ao teto. (Um desespero. “O que foi que eu…?”. E um filme qualquer na cabeça. Não, não é um qualquer, é um filme capaz. “Capaz do quê?” Capaz. Só.)
Passa as costas da mão por cima das pálpebras e aperta os olhos de mar que doem de sal.
(Há um incômodo no estômago, porém nada fará com relação a isso. Nem poderia. Geladeira nua, armários em estado de relativa dormência.)
A expressão, contudo, alivia. (A música não fora esquecida. Uma outra língua estrangeira falando dos mesmos problemas dela.) Sistema nervoso periférico autônomo parassimpático em funcionamento.
Então toda a vida é jogada no inconsciente. Gasta-se horas de puro empenho num desafio de blefes diabólicos. No final, nem o amor nem a loucura de Caio Fernando de Abreu: só o cansaço. Empate: vingança futura.
Durmamos agora. Em oito horas, sobrevida.

31/10/09

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