sábado, 27 de março de 2010

Autoflagelação

Chego em casa
e quero lavar-me dos dias.
A comunhão é feita de sangue.

Nas minhas veias sem sentido
pulsa o pecado;
No meu coração,
se encerra a alma.
A comunhão é feita de sangue.

Sou eu a campeã de causas perdidas,
A sonhadora com amores feitos de datas de validade.
Mas a comunhão é feita de sangue.

Nos teus passos não há alento ou serenidade,
No teu sorriso - gesto único de soberania -, nada senão escárnio:
A comunhão é feita de pó.

É a dor que eu quero compartilhar
Como forma de redenção.
E assim tem sido drenada de mim a vida.
A comunhão é feita de sangue.

E peço que me inclua nas suas orações,
Se é real esse poder de teu deus.
A comunhão é feita de pão.

Reze por seus pecados logo cedo,
Pois tua tendência é acumulá-los ao longo do dia.
A comunhão é feita de sangue.

Feche os olhos e veja!,
dos céus chove ácido.
A beleza não dura,
Mas a salvação eterna vem do sangue.

E é do sangue que virá o teu prazer ainda rebento...,
Abra os braços,
Que ali vem o teu salvador
Com sangue nas mãos também.

segunda-feira, 15 de março de 2010

I

Versar é quase demérito. Não há elogios. Não há compensação. É uma não-habilidade, uma desqualificação. Todo poeta sabe que versar exige o tempo que os outros melhor aplicam em coisas significantes. Apesar disso, é o que eu faço. Algum problema?

Escrever

Escrever é viver outra vida.
Todo aquele que tem o dom para a escrita é um sortudo azarado.
Que desgraça é quando as duas ou cinco vidas que ele tem dão errado, dão todas errado!

Escrever, amigo.
Eu escrevo porque sinto perder os sonhos.
Não sou tão boa quanto Pessoa, Quintana ou Lispector – até porque esses eram bons demais.

Eu escrevo porque me sinto fantasma.
Dizem precisar de mim, mas talvez ninguém precise realmente.
Eu sou completamente dispensável – e é nisso que tenho me concentrado ultimamente.
Tenho sono – e só sono – e durmo sem esforços e como sem esforços e subo e desço escadas sem maiores problemas.

Tenho feito como a dama européia cansada das nuances da corte:
Fecho os olhos e espero o cavalheiro me conduzir no salão.
(Sendo o cavalheiro ninguém mais ninguém menos que a Vida personificada).
E assim tem sido.
E assim continuará sendo.
Se alguém reconhecer meu talento algum dia, já estará bom. Também não faço questão de estar viva até lá se não reconhecerem antes.

Não, não faço questão de nada!
Se quiseres servir o jantar mais cedo na data do meu próprio aniversário
Para que não se atrase, que sirva!
Sou gente, não empecilho no caminho dos outros.

Se me perguntares “vais bem?”, como perguntas aos seres humanos, não aos empecilhos no seu caminho,
Eu respondo que “sim” ou que “não” ou que “não sei”, que se soubesse eu dizia.
Mas como disso eu não sei – e há muitas coisas que eu não sei –, eu digo que não sei e ponto final.
Há sim como não se saber o estado das coisas, inclusive de si próprio!
Eu bato o pé nisso, embora as pessoas não entendam...

Menina-dos-olhos

Olhos brilhantes. Ela mexe os dedos dos pés por dentro dos sapatos. Olhos brilhantes. Ela quer dizer alguma coisa. Olhar fixo. Ela sorri. Há um sorriso nos lábios. Um sorriso maquiavélico. Fecha os olhos e respira com satisfação. Naquele único ato, está se vingando do mundo inteiro. Está privando a própria presença e genialidade de milhões de pessoas. Ali, tem mais poder que Deus. Está tão alta que não pode mais descer de seu trono de poder.
Sorri, alegria doentia. Nunca sentiu tanta satisfação no mundo, nunca sentiu tanto prazer. Joga a cabeça para trás. Ela roubou as rédeas do seu destino. Sabe que todos ficarão boquiabertos quando souberem que ela teve coragem. As mãos se traduzem no gesto irônico da reverência e então se erguem bem altas. Os olhos abrem. Brilhosos. Então, um mergulho perfeitamente ensaiado de 60 metros.
(Não se preocupe, não é um problema. Antes do quinto andar, ela já terá tido um ataque cardíaco.) Ouve-se um único baque. Os vizinhos vão espiar, assustados. Pareceu tiro. No rosto, o escárnio estampado. Ouviu-se um único baque. E dentro de todos os corações, a aflição. Olhos inocentes são tampados, assim como os dela ao chegar da sirene.
Muitos jamais entenderão o que é o suicídio.

Calma

Você me dói no coração.
Você me machuca na face distorcida,
Mas você me dói no coração.

Não em outro lugar,
porque não permito.
Não na mente,
porque esta já não sente.

Calma.
Você é permanente,
dói no coração

Respiro e dás-me calma.
Amor que dói no coração.

Sei das coisas como quem está para morrer.
Fecho os olhos como quem tem a certeza de um fato.
Debalde!
Não morro, nem te encontro em sonho ou outra dimensão.

É a calma.
Recito um mantra ou dois.
E deito na calma que vem depois.

Contudo, a ausência, irmã da calma,
me traga como a fumaça do Dono da Tabacaria.
E do mesmo jeito que fez com você,
sou arrastada para lugares gélidos e plácidos,
lugares de calma.

Então, calma.
O barulho dos meus pensamentos
não interrompe a vibração da calma,
da alma.

Ausência, angústia e calma.
Não se escapa de nenhuma.

Medito na paz ou na dor
da minha caligrafia.

12/07/09.

Os Mendigos da Praça

Minhas preocupações são como mendigos às portas dos outros.
Ninguém se preocupa com elas – raramente alguém chega a olhar em seus rostos sujos.

Mas quando chegam à minha porta,
Abraço-lhes as feridas, as mentiras e os maltrapilhos;
Beijo-lhes os pés sujos de terras e frutinhas;
Alimento-os com novas reflexões infrutíferas;
Visto-lhes com novidades estarrecedoras.

São preocupações velhas tornadas novas para sempre, então, as que tenho.
Contudo, ainda são sem teto, ainda são sem lar.
Não, não podem morar em mim: são muitas, são todas, são uma multidão das minhas nulidades múltiplas multiplicadas por cem.

No fundo, bem no fundo, eu só posso dizer se gosto ou não gosto.
Delas, em si, não gosto não, no entanto não o direi para os que as ocasionaram.
Não, nunca direi que não os gosto.
Nunca me arrependerei de alguém ter-me botado mais cabelos brancos na cabeça,
Porque talvez não tenha dependido deles ter me botado mais cabelos brancos na cabeça.
Talvez devesse ter sido – assim foi: eu sou naturalmente paranóica com coisas que não posso controlar.

Paranóicos sempre têm muitas preocupações.
Muitas preocupações batendo-lhe as portas todos os dias, meu bem.
Acho que devemos apenas fechar os olhos e descansar por enquanto.

19/09/09.

As Cartas Certas

Viver o poker,
Jogar a vida.

Quando jogo poker,
Fecho os olhos e ainda vejo o jogo acontecendo.
As cartas dadas, os olhos trocados, os goles de uísque, os companheiros agitados com
Sinais que significam qualquer coisa que me interessaria se eu soubesse o que são...

Quando vivo a vida,
Fecho os olhos e ainda vejo a vida acontecendo.
Os blefes, as rugas, os empurrões, a fumaça do cigarro, os inimigos com seus
Sussurros e olhares cerrados que significam qualquer coisa como escárnio.

Poker vivido,
Vida jogada.

(Sim, é de mim que falam.
Pois falem.)

30/09/09.

Ceifadores da própria existência

Doce safra de ceifadores da própria existência,
Tua presença é silenciosa como a noite.

Eu me junto ao grupo com o peito aberto, perfurado por um anzol
E a luz de dentro saindo e se extinguindo pela ferida.
Choro agora, como todos os que não choraram antes,
A vida pesada que tive, puxada pra baixo por qualquer coisa extra-gravitacional.

A luz do peito se extinguindo.
O amor declinando.
A vida dando seu último recado.

Eu mergulhei em milhões de pensamentos desconexos
E saí convenientemente enxuta – meus pensamentos ficaram por lá mesmo.
Na melhor das hipóteses, poupei-me das preocupações insólitas que são os pensamentos.

Por meses, caro amor estrangeiro qualquer, eu sobrevivi a um deserto repleto de infernos emocionais.
Deitei a cabeça no travesseiro e esperei passar.
(Esperei que aliviasse, ao menos, mas não passou.)

Quebra-cabeças.
O pau quebra-cabeças quebrando a minha cabeça enquanto tento dormir.
Só acordo atordoada – sim, é assim que tem sido.

Quem sabe, uma vida de misericórdias aguarda por mim,
Mas, enquanto isso, juro padecer por conta própria, somente.
(Quem sabe se não estará lá meu anjo?)

Doce safra de ceifadores da própria existência,
Tua presença é silenciosa como a noite.

E a cada queda eu juro já não sentir mais dor.

Socorro Imediato

Vede no que vós me tornastes, depois de tanto desprezo e dedicação:
Sou a poeira invisível nos seus ombros a lhe fazer peso ao andar;
Sou a pedra mágica que aparece somente para lhe fazer tropeçar.

Se não vos contentais nem alegrais com isto, saibas
Que fui o último coração humano a bater por estas terras.

Eu sou o último coração humano a bater por aqui
E no meu gesto de ajuda há um grito de socorro,
E no meu grito de socorro há um gesto de ajuda.

Se queres conhecer-me por inteiro – tão inteiro
Que terás de duvidar depois – ides ao açougue
Que lá serviram muitos de mim, seres humanos,
E olharás nos meus olhos vazios,
E verás o meu sofrimento,
E sentirá o sofrimento do mundo, –
A humanidade inteira em pensamentos e ladainhas convulsionantes –
Como eu tenho sentido e sido sujeita.

Então, terás medo (e muitos o têm)
E perguntarás baixinho
“No que me tornastes?”.

Expressão Máxima do Surrealismo Pessimista

Nada mais de mim tem sido eu mesma.
Conheço-me por cópias – cópias fielmente espalhadas pelos cantos da sala.
Sinto um arrepio percorrer o corpo como o último respiro do doente no hospital
Toda vez que toco o frio da minha própria mente.

(Erro.
E erro de novo.
Só por hábito.)

E então meu olhar torna a cair até revirar-se para dentro
E o que vejo é apenas o preto – o mesmo preto dos meus dias seguintes.
Abraço-me em uma esperança vã
Com uma tentativa falha
De alcançar qualquer coisa.

(Morro e torno a morrer.
Durmo e torno a morrer.
Morro e torno a dormir.
Durmo e torno a acordar.)

De manhã amanheço,
De tarde tardo,
De noite ardo,
Tal mal que padeço.

(A vergonha de não suportar mais o caos interno
Nem entender que significado pode ter uma risada nesses dias tenebrosos
Me perseguindo em corredores silenciosos e infinitos.)

Sofro com um incômodo direto na nuca
E algo como mãos invisíveis aperta meu pescoço.
Quando acordo, sou eu mesma me enforcando com os lençóis que outrora me cobriam por vontade própria.

(Na rua, vejo pessoas andando de costas.
Na vida, sou eu quem senta na poltrona de costas para a frente do ônibus
E vê tudo passar mais rápido
E só olha pra trás, pouco entendendo.
Fecho os olhos e vejo círculos vermelhos.
É aí que enjôo.
Vomito e naufrago.)

17/10/09.

Onerosidade

Por algum lado,
Não me sinto inclinada a qualquer proposta.

E tu, tu que simulas bem, minha criança,
Tu tens o direito de encontrar o amor,
Mas não a obrigação de aceitá-lo com naturalidade.

Espontaneidade custa caro, criança.

II

(...) Uma pequena parcela de tempo do dia dedicada aos meus dedos finos. Analiso-os com desprezo. As unhas que eu parei de roer voltaram a ser nervosamente estraçalhadas novamente. (...)

Pelas Bordas

Leva um tempo para descobrir que isso absolutamente NUNCA foi uma questão de escolha. Eles vêm e pelas bordas eles se vão. Tão longe, tão perto. São só ondas geradas por uma pedra atirada contra o lago, tendo como objetivo predileto alcançar os pés da menina que lhes desperta à vida novamente. É esse amor sutil que todos deveriam almejar e ter, somente esse. Eles vêm e pelas bordas eles se vão.
Digo que é assim que deveria ser porque já fui tudo, sei como é ser cada pessoa e escrevo! Se quiser tentar, ainda assim, dou-lhe o último aviso prévio: não há glamour algum em ser. Se puder, não seja, só inspire.
Por esses e por outros caminhos, minha alma naufragou, até estancar na praia idílica do Sonho. Minha consciência alternava entre o som e algumas imagens fracas do real. Bendito seja o nada absoluto, completo e vago de dormir!
Isso, contudo, é só para quem sabe que todos os caminhos levam sempre à mesma idéia insone - "mais [funda] que a morte" - com desejo lacrimado nos olhos e café instituído na boca.
(...)
Meus rituais matutinos começam com essas divagações absurdas, desconjuntadas, porém extremamente sofisticadas.

Corrente

A vida toda como erro. Cheirava a erro. Tinha gosto de erro. Levemente agridoce. Era essencialmente extra dimensional.
(…)
O tempo passava rápido naquelas horas. Tinha convicção plena de que passaria pelas cinco horas da manhã sem sentir e começaria um novo dia sem ter dormido. Gostava de desafiar a si mesma quando não havia outras escolhas.
Fato observável pela escolha do curso que prestaria caso passasse no vestibular. O mais difícil.
Mas, onde eu tinha parado mesmo? Ah, sim. A vida toda como erro. Forte como erro. Inesquecível como todo erro.

Livro Apócrifo da Epifania

A idéia veio-me com aquele ar de renovação que toma grandes proporções e se torna uma espiral ascendente que, de repente, nos bate ao rosto e nos impele a novos caminhos gloriosos. Contudo, pelo que eu entendo, a idéia não tinha é nada de fantástica.
De todo modo, prosseguiu com a fantasia idealística digna de uma atuação degradante.

Deboche

Adquirira um desses defeitos congênitos que não larga a gente por nada nesse mundo: ser educado e tolerante. Já de longe era identificável sua parcela com o ridículo.

Comédia em um Ato

Fiz uma sessão de cinema para assistir a minha própria tragédia. No entanto, a pipoca ficou fria e o suco, aguado e quente. Não assisti a porcaria nenhuma. Foi só patético.

Caminhos Tortuosos

(…)
Ninguém me ensinou nada sobre essa vida tortuosa que me deram. Peguei o que tinha no meio do caminho e fui adiante, vestindo maltrapilhos e ainda assim amando aos pobres. Disseram que era loucura, porém disso eu já sabia.
(…)

Intervalo de Pensamento

Por alguns momentos me iluminava a idéia de que todos aqueles homens estavam ali por mim, se submetiam aos meus caprichos por vontade própria, escutavam minhas palavras de forma mais atenciosa do que eu merecia.
Eu bem sabia que eram meus amigos. E que faziam aquilo tudo com medo da despedida. Ou o medo fazia aquilo com eles. Mas, entenda, eram homens. A situação toda expunha a dependência e a fragilidade no cerne deles. Eu era suas mães.
Ou Branca de Neve. Eles, os anões, presos em uma infância impossível e em parte bajuladores – sem saber como sê-lo – e grosseiros – pela prática com a matéria-bruta. Só que o meu destino era a maçã proibida, a pedra lapidada que circulava sem sentido diante de faces admiradas e mãos descuidadas.
Eram homens, ora. E nem um intervalo de pensamento poderia tirar aquilo deles, por mais que eu tentasse. Aquilo fazia deles qualquer coisa mais distante que uma parte de mim, do meu próprio corpo, embora também os fizesse meus amigos. Uma parte intocável da minha personalidade.
Nada que uma boa mágoa um dia não pudesse dilacerar, como tem sido tudo com a vida.

Sorriso de Intervalo

Tinha daqueles sorrisos amenos que não dizem nada, nem mesmo alegria. Não à primeira vista. Não em uma foto. Mas, ainda assim, não era ela. A idade era verde, imatura. Na parede, a tinta descascada. Aborrecia-me não saber o que dizer.
Eu gostaria de ter o dom de não falar nada e não perder o tato, contudo, eu falava, como qualquer um e o que qualquer um falaria.
“É uma pena.”
Ecoei no vazio daquelas paredes. Uma manifestação solitária da chuva chegou ao meu olfato.
Olhei novamente para o sorriso, brincando comigo. Fechei os olhos. Nada mais daquilo era real.

Leitura a dois

Tende ao desespero com o livro na mão.
Abre-o com energia, macula a clareza das palavras.
Grita por dentro, busca uma força para continuar a lendo.
Aperta-o com força, extinguindo a limpidez da poesia.

Tende, tende ao desespero.

Vira as páginas rasgando-as internamente,
Dói, oh, dói.

Ponto: uma contração junto ao peito, um dilaceramento inquestionável…
Vírgula: um nó na garganta.
Exclamação: a admiração de uma vida surpreendida (ao que nos concerne, o céu que nenhum de nós vê, a farsa que nenhum de nós tem sozinho…).
Interrogação: uma queda de 20 andares.
Reticência: a indecência, céus, a decadência…

Tende, tende ao desespero com o livro na mão.

E de leitura a dois eu entendo, sim, disso eu sei.
Dança um tango e lê um livro a dois, quem sabe no qual se dará melhor?
Se teu par for fiel, se teu par for capaz, sim!, será bom.

Mas das minhas incoerências só eu poderei me libertar um dia.
E, quem sabe, quem sabe se lá eu tenho poder algum sobre alguma coisa na minha vida
Ou ser boi e mascar a grama, mais nada.

Quem sabe se será bom, quem?
Diz-me enquanto é tempo, amor.
Diz-me que o tempo ao menos valeu a pena…

Leitura a dois: tendo ao desespero.

Pequenas Epifanias

Começa com um sorriso arreganhado e tirânico, mas breve. Seus olhos percorrem a sala e o seu raio de repugnância se alastra pelo ambiente. Naquela época, eu sentava no meio. Desenhava distraidamente esquemas da aula anterior antes de ver, não, de sentir aquela presença essencialmente má. Às vezes eu o via passar pelo pátio e, então, o meu coração se encolhia, oprimido.
As minhas mãos reclusas, as minhas unhas torturadas pela ansiedade, os meus esforços intuitivos: tudo se sentiu perdido no terror inaugural daquela manhã. Estremeci. Ele apenas deu as costas e começou a escrever no quadro. Adriana perguntou o que havia comigo e eu disse que nada. Àquela altura, já suava frio. Ela esperou por um longo minuto de silêncio e, insatisfeita, voltou-se para frente de novo.
Dentro de mim, eu agonizava aflita enquanto buscava por uma saída. Dentro de mim, eu forçava para os lados – talvez minha alma pudesse ter a propriedade e a conveniência de se tornar menos densa agora e se esvair pelos poros. Então, ele se virou novamente. Eu mal pude aproveitar o tempo para pensar em uma rota de fuga imediata, nem que significasse ir para a diretoria. Desgostoso, postou-se a frente da classe e torna a fitar os mais falantes, que se calaram em questão de segundos.
Contudo, foi em mim que seu olhar se fixou após frear no tempo como um touro desafiado em arena. Foi ao meu lado que ele veio, e veio com um sorriso torto depois de passar uma redação à turma, e se abaixou daquele modo asqueroso de sempre, e sussurrou com mel e veneno na língua:
Guarde a Matemática, mocinha. No final da aula eu te passo uns exercícios.
E só isso me transtornou logo de início, ainda que eu já soubesse, de alguma forma, a verdade. E, mais do que em toda a minha vida, era justamente por saber a verdade que eu temia. No final da aula, esperei o máximo que pude em completo estado de inércia. Adriana olhou para mim e naquele instante eu senti que precisava de uma desculpa, uma daquelas boas. Ela até abriu a boca, só que recuou. Interna e imperceptivelmente, ela recuou e se foi. Tive a primeira das minhas pequenas epifanias: ninguém nunca vai estar lá.
Dois minutos – eu e ele. Ainda estava aterrada no meu lugar, tentando me inclinar para trás na medida em que ele se aproximava. Dentro de mim, havia uma memória bem guardada e escondida de algo que eu não sabia direito se tinha acontecido. Algo se rasgava fundo na minha carne: comecei a sentir uma dor lancinante e fez-se sentir latejando uma parte do meu corpo da qual eu não tinha conhecimento. Eu resistia à ânsia intensa de vômito, o que pioraria ainda mais as coisas.
(Uma coisa que eu notei é que, neste momento, ele não suava, porém eu me desfazia em líquidos diversos.)
Eu gosto de crianças obedientes, sabia?, disse o monstro, apoiando-se na minha carteira, com seu odor fétido. Sua mão grosseira de giz passou pelo meu rosto enquanto todo o resto de seu corpo parecia se deliciar com o meu medo. De repente, apertou meu queixo e levantou o meu rosto: meu olhar caído para o chão o irritava. Levanta e olha pra mim, menina, eu quero que sinta a transformação, eu lembrei.
Não tive tempo nem maturidade naquela hora para responder-lhe com um tabefe na cara, como faria anos depois (Mas nossos encontros já são casuais demais, senhor, não acha?). Ele me conduziu brutalmente pelo braço – e tal indelicadeza não era de me surpreender – para ir até a porta. Trancou-a.
Sabe, eu gosto mais de garotos, e lá começava ele com sua seção confessional típica ao mesmo tempo que começava a tortura, porque me lembram criança. Agora você não entende, vadiazinha, mas vai entender algum dia. (Vadiazinha, penso eu até hoje, vadiazinha? Um dia eu o desafiei. Paguei muito caro. Mas o que é que leva um homem com mais de cinqüenta anos a chamar uma garota indefesa como eu de vadia? O quê?). Foi me encostando na parede ao lado do quadro, com o corpo de homem que eu também não entendia ainda. Aquilo tudo me pareceu uma maldição a qual eu já tinha sido destinada, embora não soubesse expressar com essas palavras.
Eu sei que você gosta…, e repetiu duas ou três vezes à medida que travava nossas carnes juntas numa união odiosa. Hoje, o pivô era o meu pescoço. Era fácil de esganar e, muito provavelmente, se tratava de um ponto que o excitava mais que o normal. Amanhã, eu descobri, sempre tinha um jeito de ficar bem pior amanhã. Era a segunda epifania.
Naquele exato momento, eu me vi em terceira pessoa. E fui transportada para uma cena de dias atrás, no mesmo local. Eu me encolhia como um feto, aflita, e as mãos tampavam os olhos em chamas. Eu não queria ver mais, eu só queria regredir à minha ignorância aos primeiros centímetros de altura. Mas as marcas no meu corpo não me deixariam esquecer nunca mais. Minha inocência havia sido desfeita em sangue pelo chão. Eu tremia, viajando numa espiral em direção ao meu primeiro inferno pessoal…
Ele me chamou a realidade ao meu virar e me agarrar pelos quadris. Eu nunca tive tanto nojo na minha vida. Virei o rosto para o lado do quadro e vomitei, ainda que ele me puxasse para si e me pressionasse contra a parede. Irritado, pegou-me pelos dois braços e me tirou daquele canto atrás mesa, tornando a me jogar ao chão. Levei dois tapas vigorosos. Subjugada, ele voltou a cometer o crime pelo qual eu tinha certeza que não pagaria. (Terceira epifania: a vida não tem necessidade de ser justa.) Entrava e saía com força. Ele regredira ao ponto animal presente em todos nós e parecia abraçá-lo de todo o seu íntimo. Ali, tive a minha quarta epifania: somos todos feitos de instintos.
Sim, era essa a transformação da qual ele me falava. Sendo sua prisioneira – tendo ele como meu cárcere – eu aprendia mais que em um colégio regular. A verdade do mundo, a verdade das pessoas. Eu nunca tive tanto medo em conhecer a verdade na minha vida. Dilacerou-me o peito e o resto do corpo, mas eu tive de aprender. E na marra. Enquanto eu chorava e me debatia, ele me dava lições valiosas e superiores aos murros e mordidas. Vivenciei, mais ali que em qualquer lugar, o mundo.
Quando saí da sala, quebrada em pedaços incontáveis, olhei para o céu e a luz me ardeu aos olhos. Os livros perderam a aderência ao longo do corredor; eu tropecei e caí após girar no ar. Meu corpo sofria de exaustão muscular grave. Eu não chorava mais porque não havia sentimento nem lágrima pra chorar coisa alguma. Então, mergulhei no ar novamente, entregue à derrota. Minha cabeça doía ao ponto de eu ter a leve sensação de flutuar. Céus, eu flutuava. Pequenos cordeirinhos e anjinhos dourados ao meu lado, eu flutuava. Mal pude acreditar. Mas daí veio o inspetor e seus passos pesados – e ele me recolocou nos eixos e me levou ao carro. Mal pude acreditar. O mundo se desconstruiu ao meu redor.
Naquele dia, sim, foi naquele dia que eu deixei de ver.

Miopia

Meus desejos se realizam continuamente em sonhos.

Deito na cama, tiro os óculos
(perco a razão)
e o que vejo é feito de emoções.
Vejamos, então, como vêem as crianças míopes.

O sonho daquela cadeira distorcida verde é ser verde e redonda
e ela o é em parte.
O sonho daquela porta grande é ser cor-de-madeira e com uma maçaneta,
ela o é.

Entretanto,
direcionei-me para minha cômoda e a vi mais claramente por estar mais perto.
A vi lilás – queria ser cobre.
A senti lisa – deveria ser áspera.
Bati na sua madeira com a ponta dos dedos – e é feita do mesmo material que deveria ser feita, porque nestas coisas o Criador ainda não inovou.

E dormi. E sonhei.
Eu era aquela cômoda, no meio de móveis quase todos perfeitos,
era eu quem mais se destacava em imperfeição.
Tratei de acordar, mas mesmo assim era eu, enredada naquela trama intricada, a mais imperfeita das criaturas.

O mistério das coisas tão real como o mistério das pessoas:
Miopia mergulhada em complexidade.

26/07/09.

Sobrevida

Beijava o cano. (Amor e sacrifício. Talvez irrepreensível desejo. Não, não, mentira: ódio e loucura. Egoísmo. Talvez loucura. Melhor.) Um respiro fundo sem qualquer significado aparente senão agonia e impaciência.
Beijava o cano, firmava as duas mãos no gatilho, sobretudo a direita, que ela era destra. Ombros rígidos. (Mas as fotos nas paredes não entendiam o porquê. “O que foi que eu deixei de dar pra essa menina? Por que, por quê? Meu Deus…”)
Olhar fixo, triste e encharcado. Boca recém e semi-aberta. Lábios secos, um gosto marrento familiar de amanhecimentos de outras vidas e desta, inclusive. Lágrimas pesadas demais e uma trilha sonora familiar no rádio.
(Faz-se acordes simples para uma combinação tão dramática.) Então, os braços pesam muito: cai e enferruja a estrutura de aço. É desistida e colocada de lado como uma boneca de pano. Os braços ao lado do corpo e as pernas abertas: a cabeça pende para trás. (A arma, inofensiva e tão culpada, tão cúmplice, continua num canto de sua mente.) Um pequeno sorriso displicente de nulidade, 5 segundos e o choro em avalanche.
O corpo sem-vontade cai para um lado qualquer: ela pára de chorar e observa o novo ângulo com olhos de criança. A miopia a torna alheia. A cabeça dói, ela sente uma pressão forte na altura da fonte. Vem uma nova onda silenciosa, com a dor incompreensível expressa no rosto.
A criança torna a naufragar com as órbitas pendendo para a sonolência e adultesce: leva as mãos aos olhos, paralelos ao teto. (Um desespero. “O que foi que eu…?”. E um filme qualquer na cabeça. Não, não é um qualquer, é um filme capaz. “Capaz do quê?” Capaz. Só.)
Passa as costas da mão por cima das pálpebras e aperta os olhos de mar que doem de sal.
(Há um incômodo no estômago, porém nada fará com relação a isso. Nem poderia. Geladeira nua, armários em estado de relativa dormência.)
A expressão, contudo, alivia. (A música não fora esquecida. Uma outra língua estrangeira falando dos mesmos problemas dela.) Sistema nervoso periférico autônomo parassimpático em funcionamento.
Então toda a vida é jogada no inconsciente. Gasta-se horas de puro empenho num desafio de blefes diabólicos. No final, nem o amor nem a loucura de Caio Fernando de Abreu: só o cansaço. Empate: vingança futura.
Durmamos agora. Em oito horas, sobrevida.

31/10/09

sábado, 13 de março de 2010

Abro com um pouco de Fernando Pessoa para melhor demonstrar meu estilo (como ele é, ou, em verdade, costumava ser desde a última vez que verifiquei): "não sou pessimista, sou triste". Há quem diga que há um pouco de Lispector dentro dos meus textos. (Que honra.) Pense o que quiser. Meu propósito é proporcionar experiências brutalmente - e o digo com toda a expressão da palavra - enriquecedoras ou nauseantes.
O que é o escritor senão um ator sem rosto, afinal? É talvez essa falta de visualização definitivamente material que crie barreiras para a Literatura e caminhos mais fáceis para os meios de comunicação em massa (leia: novelas da Globo).
Pois não se aflinja, amiguinho. Eu escrevo porque acredito que há coisas que todos deveriam sentir e crio meus próprios artifícios para que haja tal aprendizado emocional.

Hasta la vista, baby.