segunda-feira, 15 de março de 2010

Pequenas Epifanias

Começa com um sorriso arreganhado e tirânico, mas breve. Seus olhos percorrem a sala e o seu raio de repugnância se alastra pelo ambiente. Naquela época, eu sentava no meio. Desenhava distraidamente esquemas da aula anterior antes de ver, não, de sentir aquela presença essencialmente má. Às vezes eu o via passar pelo pátio e, então, o meu coração se encolhia, oprimido.
As minhas mãos reclusas, as minhas unhas torturadas pela ansiedade, os meus esforços intuitivos: tudo se sentiu perdido no terror inaugural daquela manhã. Estremeci. Ele apenas deu as costas e começou a escrever no quadro. Adriana perguntou o que havia comigo e eu disse que nada. Àquela altura, já suava frio. Ela esperou por um longo minuto de silêncio e, insatisfeita, voltou-se para frente de novo.
Dentro de mim, eu agonizava aflita enquanto buscava por uma saída. Dentro de mim, eu forçava para os lados – talvez minha alma pudesse ter a propriedade e a conveniência de se tornar menos densa agora e se esvair pelos poros. Então, ele se virou novamente. Eu mal pude aproveitar o tempo para pensar em uma rota de fuga imediata, nem que significasse ir para a diretoria. Desgostoso, postou-se a frente da classe e torna a fitar os mais falantes, que se calaram em questão de segundos.
Contudo, foi em mim que seu olhar se fixou após frear no tempo como um touro desafiado em arena. Foi ao meu lado que ele veio, e veio com um sorriso torto depois de passar uma redação à turma, e se abaixou daquele modo asqueroso de sempre, e sussurrou com mel e veneno na língua:
Guarde a Matemática, mocinha. No final da aula eu te passo uns exercícios.
E só isso me transtornou logo de início, ainda que eu já soubesse, de alguma forma, a verdade. E, mais do que em toda a minha vida, era justamente por saber a verdade que eu temia. No final da aula, esperei o máximo que pude em completo estado de inércia. Adriana olhou para mim e naquele instante eu senti que precisava de uma desculpa, uma daquelas boas. Ela até abriu a boca, só que recuou. Interna e imperceptivelmente, ela recuou e se foi. Tive a primeira das minhas pequenas epifanias: ninguém nunca vai estar lá.
Dois minutos – eu e ele. Ainda estava aterrada no meu lugar, tentando me inclinar para trás na medida em que ele se aproximava. Dentro de mim, havia uma memória bem guardada e escondida de algo que eu não sabia direito se tinha acontecido. Algo se rasgava fundo na minha carne: comecei a sentir uma dor lancinante e fez-se sentir latejando uma parte do meu corpo da qual eu não tinha conhecimento. Eu resistia à ânsia intensa de vômito, o que pioraria ainda mais as coisas.
(Uma coisa que eu notei é que, neste momento, ele não suava, porém eu me desfazia em líquidos diversos.)
Eu gosto de crianças obedientes, sabia?, disse o monstro, apoiando-se na minha carteira, com seu odor fétido. Sua mão grosseira de giz passou pelo meu rosto enquanto todo o resto de seu corpo parecia se deliciar com o meu medo. De repente, apertou meu queixo e levantou o meu rosto: meu olhar caído para o chão o irritava. Levanta e olha pra mim, menina, eu quero que sinta a transformação, eu lembrei.
Não tive tempo nem maturidade naquela hora para responder-lhe com um tabefe na cara, como faria anos depois (Mas nossos encontros já são casuais demais, senhor, não acha?). Ele me conduziu brutalmente pelo braço – e tal indelicadeza não era de me surpreender – para ir até a porta. Trancou-a.
Sabe, eu gosto mais de garotos, e lá começava ele com sua seção confessional típica ao mesmo tempo que começava a tortura, porque me lembram criança. Agora você não entende, vadiazinha, mas vai entender algum dia. (Vadiazinha, penso eu até hoje, vadiazinha? Um dia eu o desafiei. Paguei muito caro. Mas o que é que leva um homem com mais de cinqüenta anos a chamar uma garota indefesa como eu de vadia? O quê?). Foi me encostando na parede ao lado do quadro, com o corpo de homem que eu também não entendia ainda. Aquilo tudo me pareceu uma maldição a qual eu já tinha sido destinada, embora não soubesse expressar com essas palavras.
Eu sei que você gosta…, e repetiu duas ou três vezes à medida que travava nossas carnes juntas numa união odiosa. Hoje, o pivô era o meu pescoço. Era fácil de esganar e, muito provavelmente, se tratava de um ponto que o excitava mais que o normal. Amanhã, eu descobri, sempre tinha um jeito de ficar bem pior amanhã. Era a segunda epifania.
Naquele exato momento, eu me vi em terceira pessoa. E fui transportada para uma cena de dias atrás, no mesmo local. Eu me encolhia como um feto, aflita, e as mãos tampavam os olhos em chamas. Eu não queria ver mais, eu só queria regredir à minha ignorância aos primeiros centímetros de altura. Mas as marcas no meu corpo não me deixariam esquecer nunca mais. Minha inocência havia sido desfeita em sangue pelo chão. Eu tremia, viajando numa espiral em direção ao meu primeiro inferno pessoal…
Ele me chamou a realidade ao meu virar e me agarrar pelos quadris. Eu nunca tive tanto nojo na minha vida. Virei o rosto para o lado do quadro e vomitei, ainda que ele me puxasse para si e me pressionasse contra a parede. Irritado, pegou-me pelos dois braços e me tirou daquele canto atrás mesa, tornando a me jogar ao chão. Levei dois tapas vigorosos. Subjugada, ele voltou a cometer o crime pelo qual eu tinha certeza que não pagaria. (Terceira epifania: a vida não tem necessidade de ser justa.) Entrava e saía com força. Ele regredira ao ponto animal presente em todos nós e parecia abraçá-lo de todo o seu íntimo. Ali, tive a minha quarta epifania: somos todos feitos de instintos.
Sim, era essa a transformação da qual ele me falava. Sendo sua prisioneira – tendo ele como meu cárcere – eu aprendia mais que em um colégio regular. A verdade do mundo, a verdade das pessoas. Eu nunca tive tanto medo em conhecer a verdade na minha vida. Dilacerou-me o peito e o resto do corpo, mas eu tive de aprender. E na marra. Enquanto eu chorava e me debatia, ele me dava lições valiosas e superiores aos murros e mordidas. Vivenciei, mais ali que em qualquer lugar, o mundo.
Quando saí da sala, quebrada em pedaços incontáveis, olhei para o céu e a luz me ardeu aos olhos. Os livros perderam a aderência ao longo do corredor; eu tropecei e caí após girar no ar. Meu corpo sofria de exaustão muscular grave. Eu não chorava mais porque não havia sentimento nem lágrima pra chorar coisa alguma. Então, mergulhei no ar novamente, entregue à derrota. Minha cabeça doía ao ponto de eu ter a leve sensação de flutuar. Céus, eu flutuava. Pequenos cordeirinhos e anjinhos dourados ao meu lado, eu flutuava. Mal pude acreditar. Mas daí veio o inspetor e seus passos pesados – e ele me recolocou nos eixos e me levou ao carro. Mal pude acreditar. O mundo se desconstruiu ao meu redor.
Naquele dia, sim, foi naquele dia que eu deixei de ver.

Nenhum comentário:

Postar um comentário