quinta-feira, 28 de julho de 2011

Amor-elevador

Olhamo-nos e num segundo era paixão.
As portas se abriam e no outro era amor, pois me deixavas...
E assim procedia de nos encontrarmos casualmente com um desconserto já muito manjado, premeditadamente fazendo nossas mãos se encontrarem, calculadamente querendo - e não podendo - que não houvesse pitada sequer de malícia ali...
Nosso encontro reticente e efêmero se procedia dentro de um elevador. Tu aspirava a aspirar meu perfume, no cangote, ao menos uma vez. E eu expunha mais e mais o meu pescoço, numa dica sensível a suas pretensões.
Certo dia, não se conteve: fui agarrada ali mesmo, com desespero e ao som do escárnio da musiquinha complacente do elevador. Seu beijo tinha um pouco de gosto do aromatizador de ambientes. Algo que me lembrava de pastilhas de naftalina e essência de baunilha... É, algo assim. Não sei ao certo. Hoje, seu beijo só tem gosto de lembrança. Pior, lembrança de elevador com luz artificial, lâmpada fluorescente refletindo em metal. Se deus existisse, saberia como eu odeio esse tipo de luz.
Seu beijo, muito bom, era também muito edificante. Construímos nossas próprias estruturas, com vigas sólidas e elevadores. Muitos elevadores. E lá subimos, no topo de nossos andares, com vista panorâmica da cidade. Alto demais para que pudéssemos morrer diante daquela vista, mas alto demais para que sobrevivêssemos à queda.
E foi assim que caímos. Do terraço para o térreo - e mais, para o subsolo. Sim, amigo, amor-(de-)elevador tem dessas: quando você acha que vai ficar ruim, fica pior.
Por mais que tentassem, se deu como fato inevitável, tal qual nossa primeira troca de olhares. E no final, do que nos adianta perguntar porque nada se construiu na horizontal, de onde não se cai e se vê por novos ângulos o que já entediava dentro do cubículo, se era mesmo amor-(de-)elevador, amor-macarrão-instantâneo?
Demolimos.

Alienação com garantia em base fiduciária

Se começamos sem confiar
uns nos outros,
Terminamos sem confiar
em nós mesmos.
É mais difícil continuar vivo do que morrer.

Senhor, sim, senhor

Todos sentem
Todos sabem
e ninguém fala
A verdade.

Essa farsa insustentável,
Com a qual já não posso
mais, de estar "tudo bem, sim,
senhor".

Não, senhor, isso não é "bem"
nem bom -
Está tudo como está,
não como deveria.

Abre os olhos e veja!

Sob as cobertas

E queimar no seu amor imprudente
E queimar no frio do inverno
E queimar,
queimar no inferno desse seu amor frio.

Sete dias...

E você, que não morre?!

O Trambique

Um dia, M. se sentiu diferente. Acordou sabendo as horas, passou sua camisa impecavelmente, deu carinho a sua mulher e foi para o trabalho.
No caminho, chegou na hora para o ônibus e sentou-se do lado de um belo par de coxas e saltou no ponto final sem pisar na lama e não se atrasou.
Sorriu a secretária do chefe, bateu na porta da sala do chefe, ganhou abraço e cafézinho do chefe e começou a coisa do jeito certo: sentado no seu lado da mesa do chefe.
Eis que discutiam o desempenho da noite anterior - a final do campeonato do time do chefe, que passara a ser seu time. E com sua sabedoria recém-adquirida, procedeu de tal modo a crer que ganharia mais que um abraço do chefe a partir do começo do mês: um aumento. Sim, do chefe.
Começou rindo largo o desempenho do colega, A., promovido semana passada. Aumentou e promoveu também sua TV 40' para um home teather muito moderno, seu carro popular para um esportivo, sua noiva para esposa. Atacou, esquivo, pelo flanco direito, as pintagas que chorava sua mulher vendendo roupas - e nisso tudo o chefe concordava e cria. Foi quando tentou driblar a zaga e chegar nas vias de fato que percebeu que, honesto, era muito capaz no que fazia, mas sempre seria insuficientemente pilantra acerca de quaisquer pilantragens.
A., seu comparsa na semana anterior, era também seu Judas. O chefe esperava somente a justa causa.

Longevidade

eu queria viver pra sempre,
mas você me envelheceu anos em meses
e esse teu tango me cansou,
essa única dança que você sabe dançar
e eu não.

Tragédia

aliás, se eu soubesse que
iria acabar assim,
não importando o que eu fizesse,
teria sido ao menos canalha.

99

De repente, dos cem poemas de amor do Neruda,
noventa e nove parecem fazer sentido...

Dança dos dias

No compasso da humanidade,
sentimento horizontal
é traduzido na vertical.

Pragmática

Pela sua cara lavada,
Vejo que tem uma boa desculpa
Que não vou ouvir de qualquer forma.

Dar de Ombros

A vida é esse solene dar de ombros
Com que se morre a cada dia.

Sua face, agora bonita,
Jazerá com os vermes,
apodrecerá, feia.

E nada fazes perante isso
- verdade absoluta que não te escondem.
Nem nada fará
Ou poderá fazer.

Tu foras concebido, também,
Em um dar de ombros.
Não notarás o amor da sua vida na primeira vez que o encontrar,
Sequer decidirá racionalmente entre todas as escolhas da sua vida
Aquilo que melhor te servirá.

E os cuidadosos que me perdoem,
Mas você provavelmente morrerá
Com um dar de ombros.
(Seu ou de alguém - outro pobre coitado).

Nem tudo na vida a gente faz:
A vida é um passo em falso...

Alle wir sitzem im selbem Boot

Nós todos sentamos no mesmo barco
E bebemos do mesmo vinho
E quebramos as mesmas regras
E nos cortamos no arame farpado das palavras
Concretas sobre o concreto.

Temos nos traído
Traído de todas
as formas
Traído e caído.

Restamos sós nas mesmas madrugadas frias,
Iludidas por promessas
De vida nova.

Nós sentamos no mesmo barco
E perdemos a compostura
quando ele vira.

Contra fatos não há argumentos

Meu caro, o mundo é surdo.

Três macaquinhos

Não está em mim,
Não está comigo.

Não quer falar,
Não quer me ouvir,
Então me vira a face.

Não bastou a boa idéia,
Perdão tampouco.
Era preciso uma renúncia
Além dos limites conhecidos.

Você pressupôs contratos
Nunca antes assinados,
Você quis um pacto de sangue...

Não quer falar,
Não quer ME ouvir.

(Não estou contigo,
Não vivo em ti.
Vivo solta, passarinho,
Viro a face, flutuando,
Encontro novo amor.)

A Revolução não espera

Ensine-me a conspirar novamente,
Me perdi dos meus caminhos originais.

Mácula literária

Você descobre que é escritor quando se atormenta, segurando uma caneta, com duas páginas em branco e o abismo que se forma entre elas até a lombada do livro.
Há, sempre, de macular essa maciez.

A máxima da Sensatez

Para aqueles que gostam de máximas morais universalizantes:
anarre o cadarço com dois nós.

A mãe

-- Senhor Downs.
-- Olá. Pode se sentar ali – o psicanalista indicou o divã – e me contar o que está pensando.
-- O que estou pensando? – ela ergue a sobrancelha e virou-se para a parede, de modo a ir se recostando no móvel macio – Ora essa. Eu penso em muitas coisas, Sr. Downs. Penso nas roupas penduradas no varal e a chuva por vir, nos amores que perdi, na medida certa dos temperos. Sim, penso em tudo isso. Sabe, minha mãe me educou do jeito que fora educada – Fez pausa, piscando longamente os cílios. Sua narrativa desacelera – Na época dela, - tentou recordar-se de algo distante, intangível, algo que não vivera – uma mulher não precisava pensar e, se o fizesse, fazia melhor escondendo a ousadia sob as tarefas mais cotidianas o possível.
Se nosso maridos resolvessem, por acaso, dizia ela, assinar um contrato com um homem a quem juramos ter ouvido falar mal entre as conversas na feira, não diríamos que era bom no calote, não. Nossos maridos diriam, nos espantando com a mão: ‘sai daqui, mulher; de dinheiro entendo eu’. Contudo, arranjaríamos nos seus modos um olhar galanteador suspeito não existente, um andar com colônias caras, bengala e abotoaduras condizentes com um esbanjo nunca antes visto – elementos plantados por nossa astúcia que, soprados aos ouvidos de nossos homens, os fariam tremer e, por fim, rascunhados em suas mentes vazias durante o almoço e a noite na cama fria na qual o deixamos a sós com seu orgulho, nossos garotos estariam de novo no caminho certo.
Sim, garotos. Garotos que sugaram os peitos de minha mãe e de mulheres que vieram antes dela, até a Mãe Natureza propriamente dita. Garotos que chegam cansados e suados em casa e que precisam de nós para que lhe demos o que comer. Garotos que brincam com seus filhos como se tivessem idade próxima, garotos que querem brincar conosco, suas mulheres-mães, com aventuras pobres – com amantes que fingimos não saber da existência (e vice-e-versa) só para manter sua canalhice mimada intacta nos nossos braços.
Mulher tem o capeta no corpo. Já ouvi dizer que por trás de toda grande guerra houvesse uma mão feminina iniciando a discórdia. Só o d’abo sabe como mentimos. Mas nem sempre é por mal. Damos nosso peito vazio, seco para que mamem. Seco por causa dos tempos de guerra – guerra entre mais garotos teimosos que brigam pelos melhores postos, lugares, coisas de homem. São garotos brincando de lutinha de espadas que deveiam ser de madeira, ceifando com força a vida de muitos, enquanto concebemos nossos filhos para a nação em nosso quarto. Guardamos para nós o segredo da vida. E é mentindo, alienando a criança de seu leite, que sangramos nossa seiva. Os dentinhos cavam mais fundo na nossa carne pelo alimento e guardamos o grito de dor para um garoto crescido.
Nascemos para ser fortalez de tantos pedidos e necessidades. De demandas infantis. Vejo mulheres fortes nas ruas, mulheres que perto de seus maridos escondem sê-lo, mas deixam a marca indelével na mente de seus filhos, para que nunca esqueçam a natureza real por detrás das coisas da vida. Vejo Capitus, Helenas de Tróia, Cleópatras, Anas e Marias Bolena, Catarinas de Aragão. Vejo mulheres que renunciam de si e que fazem ouvir-se, cada qual a seu tempo... – e respirou fundo, absorta.

O psicanalista segurava o papel e caneta por hábito, pois nada anotara.
--Você acha que um dia vai ser diferente, Dr. Downs? – ela olhava pela janela. Downs não respondia, estava ocupado demais digerindo suas reflexões e as formas de seu corpo harmonicamente feminino e curvilíneo contra a luz.
-- Em casa, deixo meu marido dar a última palavra. Acho que vai ser sempre assim, na verdade. Digo, não somos meros apêndices dos homens – somos nossas, muito nossas -, mas é esse o nosso papel para com eles. É por isso que gostam de nós. De todo modo... – delongou-se, pensativa – é hora de ir, doutor. – disse, pegando a bolsa ao se levantar – Foi um prazer. Até a próxima.
-- Perfeitamente, - respondeu ele, inutilmente levantando-se para lhe abrir a porta.
Pegou, pois, um charuto e pôs-se a pensar, fumando. Afastou o charuto e olhou-o com desconfiança.
-- Maldito seja Freud.

Vitória e derrota sob o Sol

Pegou a arma, sem o absurdo que seria pedir permissão, e escondeu na mochila. Saiu de casa correndo, dizendo que já voltava.
Mentiras, um mundo de sombras construído de mentiras. De tal modo que até mesmo sua visão era turva, os objetos flutuavam ao redor de sua trajetória em velocidade e os fatos seguiam desconexos. Escondia um pouco – o necessário – de cada um, até duvidar do que havia dito e para quem. Não se afirmava por diário: sua realidade era escorregadia. Não lhe apeteciam diários, de qualquer forma.
Poucos – na verdade, ninguém – compreendiam porque remoia tanto o passado. É para que, se um dia confrontada com o que fizera ou deixara de fazer, não se traísse, não fraquejasse na e diante da incerteza. Mastigava os fatos e assim legitimava seu comportamento andarilho.
E corria. Enquanto corresse, pensaria nisso e aonde ir. Lembrou-se de seu segundo lar, a escola do ensino infantil e fundamental. E lembrou-se também, ao parar ofegante na esquina, de que pensava tanto no passado pelo mesmo motivo que a trouxera ali: o passado lhe era caro, sim, em todos os sentidos.
No seu passado, gastara-se. Esbanjara sentimentos, lágrimas, suor, saliva. Marcas de expressão eram o que de mais duradouro havia recebido em troca. Devia seu olhar cansado a elas – e a partir desse era possível ler o que se quisesse ler no resto do corpo, na postura arcada ou ereta. Ainda assim, só podia se agarrar ao passado – sua realidade se estruturava sobre o que um dia já fora realidade. A certeza dos dias passando, do cabelo crescendo, do sol que circunda seu mundo pessoal, dos lábios das pessoas se mexendo e os ecos eternos que geravam...
Não havia deus, havia fatos – e esses podiam ser extenuados em sua graça por uma busca completa, obsessiva pela verdade. A verdade, que se esconde na opulência dos nossos gestos, nos labirintos dos lábios e das perfídias que proferem... Não havia o que não escrutinasse com impaciência.
Deixou-se cair, exaurida, no chão de concreto e encostou-se no muro. Gramíneas repousavam em paz à direita, do mesmo lado em que o sol se punha, atravessando com um raio sua visão periférica. Isso incomodava-a de vez em quando. O muro no qual estava encostada era o do colégio. Se a infância é mesmo um lugar, teria um pedaço daquele chão, daqueles edifícios, do rejunte entre as lajotas. E para sempre estaria ali, com seu nome escrito em alguns tijolos, como se isso tudo bastasse para lhe fazer eterna.
Pois bem. Fugira de casa, com uma arma na mochila. Sentia-se afundar no chão, queria afundar no chão peloamordedeuscomoqueria. Pegou a arma, trêmula, para fazer o que tinha que fazer, o imperativo categórico que lhe soprava o vento no ouvido.
Uma última vez, quis lembrar. Tomada de um vazio completo, esquecera do passado no qual tanto se agarrava – esquecera o nome, de onde vinha e pra onde ia. Abriu os olhos, em busca cheia de agonia. Seu olhar correu os paralelepípedos do estacionamento morto, a mão e o braço com a arma iam relaxando... Recordou de um som, que o vento ajudava a trazer. Recordou a mão calejada; o peso de cinco quilogramas de sua lira (um metalofônico afinado) distribuído pelo talabarte; a marcha insuportável e a postura ereta que só os pedantes conseguiam manter. Aprendera, sim, a mantê-la. A gota de suor que percorria sua espinha abaixo, os gritos do maestro – tudo arquivado. O maestro, é claro, sempre estava certo e, por mais que queimassem sob o sol antes – dias antes – do concurso, teriam de fazer tudo de novo. Recordou-se que o diagnóstico do maestro era ruim. Não ganhariam. Não dessa vez... “Não dessa vez”, repetiu em voz alta.
E na mesma noite, limpara seu instrumento até que brilhasse novamente. Limpara cantando as notas, ritualizando seu sacrifício com o som dos atabaques, pratos e fuzileiros nos ouvidos, compadecendo-se e compartilhando da dor da derrota eminente da fanfarra.
“Não dessa vez, eles diziam...” Reergueu o braço e a mão, revigorada por aquelas memórias de quando lutava inocentemente por alguma coisa, qualquer coisa. “Mas eles estavam errados. Nós marchávamos e ensaiávamos para ganhar, então nós ganhamos.” Suspirou. “Eu estava lá, eu levantei aquele troféu, nós ganhamos. Eu sei que sim.”
E aconteceu.