quinta-feira, 28 de julho de 2011

A mãe

-- Senhor Downs.
-- Olá. Pode se sentar ali – o psicanalista indicou o divã – e me contar o que está pensando.
-- O que estou pensando? – ela ergue a sobrancelha e virou-se para a parede, de modo a ir se recostando no móvel macio – Ora essa. Eu penso em muitas coisas, Sr. Downs. Penso nas roupas penduradas no varal e a chuva por vir, nos amores que perdi, na medida certa dos temperos. Sim, penso em tudo isso. Sabe, minha mãe me educou do jeito que fora educada – Fez pausa, piscando longamente os cílios. Sua narrativa desacelera – Na época dela, - tentou recordar-se de algo distante, intangível, algo que não vivera – uma mulher não precisava pensar e, se o fizesse, fazia melhor escondendo a ousadia sob as tarefas mais cotidianas o possível.
Se nosso maridos resolvessem, por acaso, dizia ela, assinar um contrato com um homem a quem juramos ter ouvido falar mal entre as conversas na feira, não diríamos que era bom no calote, não. Nossos maridos diriam, nos espantando com a mão: ‘sai daqui, mulher; de dinheiro entendo eu’. Contudo, arranjaríamos nos seus modos um olhar galanteador suspeito não existente, um andar com colônias caras, bengala e abotoaduras condizentes com um esbanjo nunca antes visto – elementos plantados por nossa astúcia que, soprados aos ouvidos de nossos homens, os fariam tremer e, por fim, rascunhados em suas mentes vazias durante o almoço e a noite na cama fria na qual o deixamos a sós com seu orgulho, nossos garotos estariam de novo no caminho certo.
Sim, garotos. Garotos que sugaram os peitos de minha mãe e de mulheres que vieram antes dela, até a Mãe Natureza propriamente dita. Garotos que chegam cansados e suados em casa e que precisam de nós para que lhe demos o que comer. Garotos que brincam com seus filhos como se tivessem idade próxima, garotos que querem brincar conosco, suas mulheres-mães, com aventuras pobres – com amantes que fingimos não saber da existência (e vice-e-versa) só para manter sua canalhice mimada intacta nos nossos braços.
Mulher tem o capeta no corpo. Já ouvi dizer que por trás de toda grande guerra houvesse uma mão feminina iniciando a discórdia. Só o d’abo sabe como mentimos. Mas nem sempre é por mal. Damos nosso peito vazio, seco para que mamem. Seco por causa dos tempos de guerra – guerra entre mais garotos teimosos que brigam pelos melhores postos, lugares, coisas de homem. São garotos brincando de lutinha de espadas que deveiam ser de madeira, ceifando com força a vida de muitos, enquanto concebemos nossos filhos para a nação em nosso quarto. Guardamos para nós o segredo da vida. E é mentindo, alienando a criança de seu leite, que sangramos nossa seiva. Os dentinhos cavam mais fundo na nossa carne pelo alimento e guardamos o grito de dor para um garoto crescido.
Nascemos para ser fortalez de tantos pedidos e necessidades. De demandas infantis. Vejo mulheres fortes nas ruas, mulheres que perto de seus maridos escondem sê-lo, mas deixam a marca indelével na mente de seus filhos, para que nunca esqueçam a natureza real por detrás das coisas da vida. Vejo Capitus, Helenas de Tróia, Cleópatras, Anas e Marias Bolena, Catarinas de Aragão. Vejo mulheres que renunciam de si e que fazem ouvir-se, cada qual a seu tempo... – e respirou fundo, absorta.

O psicanalista segurava o papel e caneta por hábito, pois nada anotara.
--Você acha que um dia vai ser diferente, Dr. Downs? – ela olhava pela janela. Downs não respondia, estava ocupado demais digerindo suas reflexões e as formas de seu corpo harmonicamente feminino e curvilíneo contra a luz.
-- Em casa, deixo meu marido dar a última palavra. Acho que vai ser sempre assim, na verdade. Digo, não somos meros apêndices dos homens – somos nossas, muito nossas -, mas é esse o nosso papel para com eles. É por isso que gostam de nós. De todo modo... – delongou-se, pensativa – é hora de ir, doutor. – disse, pegando a bolsa ao se levantar – Foi um prazer. Até a próxima.
-- Perfeitamente, - respondeu ele, inutilmente levantando-se para lhe abrir a porta.
Pegou, pois, um charuto e pôs-se a pensar, fumando. Afastou o charuto e olhou-o com desconfiança.
-- Maldito seja Freud.

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