quinta-feira, 28 de julho de 2011

Vitória e derrota sob o Sol

Pegou a arma, sem o absurdo que seria pedir permissão, e escondeu na mochila. Saiu de casa correndo, dizendo que já voltava.
Mentiras, um mundo de sombras construído de mentiras. De tal modo que até mesmo sua visão era turva, os objetos flutuavam ao redor de sua trajetória em velocidade e os fatos seguiam desconexos. Escondia um pouco – o necessário – de cada um, até duvidar do que havia dito e para quem. Não se afirmava por diário: sua realidade era escorregadia. Não lhe apeteciam diários, de qualquer forma.
Poucos – na verdade, ninguém – compreendiam porque remoia tanto o passado. É para que, se um dia confrontada com o que fizera ou deixara de fazer, não se traísse, não fraquejasse na e diante da incerteza. Mastigava os fatos e assim legitimava seu comportamento andarilho.
E corria. Enquanto corresse, pensaria nisso e aonde ir. Lembrou-se de seu segundo lar, a escola do ensino infantil e fundamental. E lembrou-se também, ao parar ofegante na esquina, de que pensava tanto no passado pelo mesmo motivo que a trouxera ali: o passado lhe era caro, sim, em todos os sentidos.
No seu passado, gastara-se. Esbanjara sentimentos, lágrimas, suor, saliva. Marcas de expressão eram o que de mais duradouro havia recebido em troca. Devia seu olhar cansado a elas – e a partir desse era possível ler o que se quisesse ler no resto do corpo, na postura arcada ou ereta. Ainda assim, só podia se agarrar ao passado – sua realidade se estruturava sobre o que um dia já fora realidade. A certeza dos dias passando, do cabelo crescendo, do sol que circunda seu mundo pessoal, dos lábios das pessoas se mexendo e os ecos eternos que geravam...
Não havia deus, havia fatos – e esses podiam ser extenuados em sua graça por uma busca completa, obsessiva pela verdade. A verdade, que se esconde na opulência dos nossos gestos, nos labirintos dos lábios e das perfídias que proferem... Não havia o que não escrutinasse com impaciência.
Deixou-se cair, exaurida, no chão de concreto e encostou-se no muro. Gramíneas repousavam em paz à direita, do mesmo lado em que o sol se punha, atravessando com um raio sua visão periférica. Isso incomodava-a de vez em quando. O muro no qual estava encostada era o do colégio. Se a infância é mesmo um lugar, teria um pedaço daquele chão, daqueles edifícios, do rejunte entre as lajotas. E para sempre estaria ali, com seu nome escrito em alguns tijolos, como se isso tudo bastasse para lhe fazer eterna.
Pois bem. Fugira de casa, com uma arma na mochila. Sentia-se afundar no chão, queria afundar no chão peloamordedeuscomoqueria. Pegou a arma, trêmula, para fazer o que tinha que fazer, o imperativo categórico que lhe soprava o vento no ouvido.
Uma última vez, quis lembrar. Tomada de um vazio completo, esquecera do passado no qual tanto se agarrava – esquecera o nome, de onde vinha e pra onde ia. Abriu os olhos, em busca cheia de agonia. Seu olhar correu os paralelepípedos do estacionamento morto, a mão e o braço com a arma iam relaxando... Recordou de um som, que o vento ajudava a trazer. Recordou a mão calejada; o peso de cinco quilogramas de sua lira (um metalofônico afinado) distribuído pelo talabarte; a marcha insuportável e a postura ereta que só os pedantes conseguiam manter. Aprendera, sim, a mantê-la. A gota de suor que percorria sua espinha abaixo, os gritos do maestro – tudo arquivado. O maestro, é claro, sempre estava certo e, por mais que queimassem sob o sol antes – dias antes – do concurso, teriam de fazer tudo de novo. Recordou-se que o diagnóstico do maestro era ruim. Não ganhariam. Não dessa vez... “Não dessa vez”, repetiu em voz alta.
E na mesma noite, limpara seu instrumento até que brilhasse novamente. Limpara cantando as notas, ritualizando seu sacrifício com o som dos atabaques, pratos e fuzileiros nos ouvidos, compadecendo-se e compartilhando da dor da derrota eminente da fanfarra.
“Não dessa vez, eles diziam...” Reergueu o braço e a mão, revigorada por aquelas memórias de quando lutava inocentemente por alguma coisa, qualquer coisa. “Mas eles estavam errados. Nós marchávamos e ensaiávamos para ganhar, então nós ganhamos.” Suspirou. “Eu estava lá, eu levantei aquele troféu, nós ganhamos. Eu sei que sim.”
E aconteceu.

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