sexta-feira, 23 de julho de 2010

Enxaqueca

No princípio, era uma corda e uma viga; um relógio e uma gaveta; uma janela e o sol; um canivete e um banheiro; uma passada e um ônibus; três caixas de antidepressivos e uma garrafa de vodka. Em comum, a acidez dos seus caminhos, a toxicidade das ideias, o envenenamento da alma. Dê-se satisfeito com uma sobrancelha levantada que a expressão geralmente é vazia ou escondida pelas sombras.
Tudo acaba seguindo um roteiro pouco diverso. A inteligência nos sufoca: o braço joga a corda por sobre a viga. A família nos esquece: a mente visualiza o revólver escondido. A cidade nos ignora: é observando-a de cima que o ser aprende. O amores traem nossa confiança: a lâmina que serra o corpo é a mesma que apunhalou o coração. Os amigos caçoam de um tropeço: cai-se não só em todas as partes da rua, porém no passado. A vida torce mais o seu pescoço: movimento similar ao desrosquear de certas tampas.
"Mas por quê?", pergunta o senso comum. Oras, que pergunta imbecil! Porque tem de ser. Já não nos perguntamos mais, mas alguém tem que morrer. Não estamos prontos para a nossa sociopatia. Alguém TEM que morrer. As pessoas estudam tanto e nada sabem; trabalham e nada constroem; vivem e nada apreciam - alguém HÁ de morrer.
Um dia, um pobre coitado que não come, não dorme e não ama decide morrer. Afinal, ele não come, não dorme e não ama, mas pensa. E é só de pensar que o seu cérebro rói e corrói. Foi-se a visão: é sempre noite. Foi-se a memória: é sempre amargo. Foi-se o tato: tudo frio e nada dói. É uma vertigem viver nesses dias, é acordar na madrugada enquanto todos dormem. O que esperam disso? O pobre coitado levanta e arrasta suas correntes consigo pelo castelo. As mãos não sustentam violão, livro ou caneta, os olhos ardem com as telas. Ele sabe que há muitas maneiras de falhar - não só na vida, contudo em sua própria desistência - e jura que desta vez vai dar tudo certo, que vai se dedicar pra isso. Jura que não vai ver um Outono de novo, que vem dali a dois dias. Jura que não há nada para fazê-lo ficar.
"Deixem-nos morrer", sussurram à noite. E o tormento continua, sem sentido. A dor é frontal e pulsa: enxaqueca.
(...)

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